os homens, pai, são muitos animais e muitas são suas ordens e suas famílias e suas espécies e subespécies.
quero por hoje apenas falar daquilo que é o homem quando visto de longe. suas cidades se espalham por todo o planeta e nem o frio nem o quente nem o baixo nem o alto chegam a ser obstáculo pra essa criatura. só o fundo da água o tem distante.
agrupados e aprisionados dentro das leis que eles pensam terem eles mesmos edificado, semelham-se uns aos outros, vistos de fora. mas no fundo de suas almas são tão parentes quanto o camelo da lesma, o elefante do lagarto, a borboleta do peixe. não falo de diferenças físicas; falo de comportamentos.
vamos até seus lugares e quedemo-nos a observá-los. eles vêem e vão com seus passos tão acertados entre si. distribuem-se entre si suas tarefas, baseados naquilo que eles chamam de mútuo consentimento mas não percebem o quanto de compromisso há com o irracional que lhes domina a maior parte dos atos. entre si combinam de filosofias que venham organizar todos os seus procedimentos e não estão sabendo que sempre resolvem o já resolvido antecipadamente nos miolos de suas vísceras. querem esconder de si mesmos que, quando babam, quem baba é o cão ou o lobo; e, quando atacam, quem ataca é o tigre ou o leão; e, quando se confiam à proteção do mais forte, é o passarinho que se ajeita no lombo do paquiderme, para alimentar-se.
e marcam os limites de seus territórios com gritos e fezes e urinas, e serão capazes de lutar por aquilo que consideram deles, mas também serão capazes de devorar os próprios filhos se estes vierem a por em perigo aquilo que considerem o seu espaço vital. e que varia o território conforme varia o animal que habita cada homem. e há os mais medrosos e os mais ousados. e os que se entregam e os que porfiam até a morte. e os que precisam da companhia dos rebanhos e os que se escondem das gentes, nos seus covis. e os que tecem para si graciosas casas ou fortalezas inexpugnáveis e aqueloutros a quem basta um teto no momento das chuvas. e os que querem crescer como o lírio do vale ou as aves do céu e uns tantos que ajuntam nos porões e nos bancos mais do que poderiam usar em dez vidas. e os garanhões indomáveis que se atiçam diante de qualquer cheiro ou qualquer forma, bem como aqueles a quem os primitivos medos de dor e de culpa impedem metade de uma ereção.
mas, vistos de longe, são semelhantes e muitas vezes não se logra descobrir que animal habita a este ou a aquele. fingem-se gente e tecem malabarismos racionais para parecer que são aquilo que nunca conseguirão ser. e acreditam em si. e se põem furiosos quando algum feiticeiro curioso lhes vem trazer um espelho. porque então eis que o que vêem são chifres e patas e caudas e garras e dentes e cheiros e fomes e instintos e corpos destinados tão só a vibrarem um momento antes da putrefação inevitável. a estes loucos que ousam abrir mapas contendo distribuições geográficas e mostrar espelhos que eliminam as máscaras do que se supõe eterno e imarcescível, a estes demitem agora, prendem depois, torturam amanhã e condenam na madrugada de depois de amanhã. para, dois ou três dias mais tarde, levantar-lhes monumentos, instituir feriados e escrever citações nos livros escolares.
supõem chamas brilhando no fundo do que supõem espíritos e não querem saber de químicas que lhes corroem as veias, instigando ações de que não se consegue fugir.
uns se sabem, outros não. alguns dos que se sabem gastam a vida em busca de uma ilusão que lhes venha a devolver a divindade tão difícil de sustentar. martelam sofismas, metem-nos no fogo e na água e os aquecem e os esfriam e os ajeitam aos golpes, até que desapareçam as contradições e o sofisma ganhe a forma de um silogismo. verdade é que nunca tenham atingido a perfeição. porque tanto o martelo quanto o fogo e a água e a intenção são passíveis de crítica. e como os há de todos os jeitos, há os que criticam e exigem coerência.
por ora, pai, é tudo o que quero falar. agora quero tomar café e passear na minha égua.
um eco ressoou na minha cabeça adormecida. abri os olhos. o menino está de pé diante de meu colchão, já vestido.
está dormindo?, pai. quero tomar café e passear na minha égua.
A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.
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