Os três CDs da caixa Orlando Silva, O Cantor das Multidões, ajudam, da maneira mais límpida possível, a reafirmar algumas verdades e a destruir mitos que durante muito tempo foram tidos como verdadeiros. Além, naturalmente, de proporcionarem o mais fino prazer a todos as pessoas de ouvidos sensíveis.
A primeira verdade: Orlando Silva é o maior cantor de música popular brasileira de todos os tempos.
Claro, pode-se discordar dessa afirmação por uma questão de gosto pessoal – ou por desconhecimento. Não são muitas as pessoas nascidas na segunda metade deste século que conhecem bem Orlando Silva. Este é sabidamente um país de memória curta, rala, fraca, e muito mais voltado para o que vem das matrizes da indústria cultural, Estados Unidos e Europa, do que para a sua própria história. Além disso, ou até por isso mesmo, muitas das gravações do cantor que se encontravam até agora nas lojas de discos eram posteriores a 1943, fora de sua melhor fase, de seu período de ouro. A caixa lançada há pouco (em 1995, época em que este texto foi escrito) pela BMG-Ariola resolve a questão do desconhecimento. Aí estão agora, disponíveis em CD, 66 das 152 faixas gravadas por Orlando Silva na RCA entre 1935 e 1942, exatamente o seu período de esplendor.
Quanto ao gosto pessoal, esse obviamente não se discute. Mas quem preferir João Gilberto, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Milton Nascimento ou qualquer outro, de Francisco Alves a Renato Russo, terá que admitir essa verdade, bastando simplesmente trocar a expressão “o maior” por o mais importante e influente. Até porque esta é a opinião de João Gilberto, Caetano Veloso, Paulinho da Viola e Arrigo Barnabé, para citar só alguns. Caetano e a geração brilhante surgida na década de 60 beberam na fonte João Gilberto, que por sua vez bebeu na fonte Orlando Silva. João o definiu como “o maior cantor do mundo”. Caetano diz que ele é “um dos mais importantes modernizadores do canto popular deste século”. “Depois de Orlando cantando com arranjos de Pixinguinha e Radamés Gnattali, não preciso ouvir mais nada na vida”, diz Paulinho da Viola. “Ele é diferente, inovador, moderno, um cantor cheio de surpresas, um gênio na plena acepção da palavra”, diz Arrigo Barnabé.
A música é o melhor produto brasileiro
Outras verdades que a caixa de Orlando Silva deixa mais claras são as seguintes: a música popular brasileira é o melhor produto do País. E o Brasil é o país que produz, há mais tempo, a mais rica e diversificada música popular do mundo, ao lado apenas dos Estados Unidos, único outro país multi-racial e de dimensões continentais que conseguiu reunir influências, estilos e ritmos das mais diversas culturas, em especial as várias herdadas da África. Nos anos em que a grande música americana tinha Cole Porter, George e Ira Gershwin e Irving Berlin, a brasileira tinha Pixinguinha, Noel Rosa, Benedito Lacerda, Cândido das Neves, Leonel Azevedo e J. Cascata. Nos anos em que a música americana tinha jazz, blues, ragtime, fox, a brasileira tinha samba, samba-canção, valsa, fox, marcha, choro. Lá havia Tommy Dorsey, aqui havia Radamés Gnattali. Assim como, antes ainda, quando lá havia Scott Joplin, aqui havia Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga. Não se trata de patriotada, absolutamente. A qualidade, a variedade e a riqueza da música brasileira estão plenamente comprovadas pela sua ampla aceitação mundial, do Japão à França, dos Estados Unidos à Itália. Apesar do fato de a música brasileira ser cantada nesta língua bárbara.
No seu brilhante texto no livreto ilustrado de 42 páginas que acompanha os três CDs da caixa, o jornalista e escritor Ruy Castro diz: “O resto do mundo, naturalmente, não sabia de Orlando – porque ele era um cantor de ritmos exóticos, numa língua ainda mais exótica”. Embora tenha sido, entre 1935 e 1942, “um dos mais perfeitos cantores populares do mundo”. “É só comparar os seus discos dessa fase com os da concorrência internacional do período: Bing Crosby nos Estados Unidos, Al Bowlly na Inglaterra, Charles Trenet na França – cantores que deram nuance e elegância à música popular e silenciaram aqueles tenores e barítonos de opereta que a infestavam”, escreve.
Para destruir definitivamente um mito absurdo
E aí chegamos à questão dos mitos durante muito tempo tidos como verdadeiros. Criou-se, desde o lançamento de Chega de Saudade, o primeiro LP de João Gilberto, em 1959 (ou, para lembrar exatamente do ponto onde a bossa nova começou, desde o lançamento de Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso, em 1958, no qual o violão de João já dava o tom em duas faixas), o mito de que a bossa nova dividiu no meio a história da música brasileira. Esse mito foi passado para todas as gerações nascidas na segunda metade do século: o de que, antes da bossa nova, o canto na música brasileira era operístico, grandiloqüente, dó no peito, vozeirão tonitroante se esforçando para passar por cima dos instrumentos, e de que só com a bossa nova aprendeu-se a cantar de um jeito cool, intimista, suave, a voz como parte da orquestra.
O bossa-novista ferrenho Roberto Menescal, bom violonista, autor de bobagens como “O Barquinho” e “Luluzinha Bossa Nova”, é ainda hoje capaz de dizer coisas deste tipo: “Para mim, Orlando Silva e João Gilberto são tão próximos quanto Michael Jackson e ópera. Tenho consciência da importância dessa forma de música, mas ela não me agrada. Nunca compraria um disco desses cantores”.
Ou seja: ele não ouviu nem gostou.
Esses mitos de que a bossa nova é divisora de águas, de que antes era tudo vozeirão, são a maior bobagem. Nada contra a bossa nova, bem entendido. A bossa nova foi importantíssima, fez a música brasileira dar um gigantesco salto à frente; alargou os horizontes, ultrapassou fronteiras, tornou-se conhecida em termos planetários. Abriu caminho para a geração de Caetano e Chico Buarque, que abriram caminho para tudo o que veio depois. Óbvio, nada contra a bossa nova. Trata-se apenas de reconhecer que tudo é evolução, tudo é processo. Sem essa de divisor de águas.
Como se a música brasileira pré-bossa nova fosse só Vicente Celestino, Carlos Galhardo e Gastão Formenti. Basta lembrar de Mário Reis, Noel Rosa, Lamartine Babo, João de Barro, Almirante, e, depois deles mas antes da bossa nova, Lupicínio Rodrigues, Lúcio Alves e Dick Farney. Sem falar de Chico Alves, que tinha grande voz mas não berrava. Todos eles cantavam com suavidade – e, cada um de sua forma, com suingue, graça, vivacidade, humor, malícia. (Tem toda a lógica o fato de que um dos grupos mais brilhantes, inteligentes e interessantes da música brasileira depois da bossa nova e do tropicalismo, o Rumo, foi procurar na fonte de Noel, Lamartine e contemporâneos a inspiração para seu canto da fala – uma espécie de radicalização do estilo cool.)
Uma impressionante variedade de timbres
E a música brasileira dos anos 30 e 40 tinha Orlando Silva. Ao contrário de Mário Reis e dos compositores-cantores citados no parágrafo anterior, Orlando Silva tinha uma voz grande, ampla – mas preferia a sutileza à potência. É absolutamente impressionante a variedade de timbres entre os quais ele passeia, a maleabilidade da voz que passa dos graves aos agudos com total facilidade – uma facilidade tão grande que parece até que é simples cantar daquela forma.
É impressionante como a voz de Orlando se adapta bem aos diversos estilos das músicas de seu repertório. Ele tem todo o suingue do mundo em, por exemplo, “Dama do Cabaré”, pérola de Noel, ou em “Boêmio”, de Ataulfo Alves, J. Pereira e Orlando Portella; tem o tom certo de melancolia (sem arroubos; sempre sem arroubos) nas valsas, como, por exemplo, “Lágrimas” e “Última Estrofe”, as duas de Cândido das Neves, e a nota exata de respeito à beleza de obras-primas como “Rosa”, de Pixinguinha, “A Última Canção”, de Guilherme A. Pereira, e “Nada Além”, de Custódio Mesquita e Mário Lago. Nesta música, que é uma de suas marcas registradas, ele se permite uma performance de virtuose com boca chiusa – um espetáculo.
Entre as 66 faixas, há pelo menos duas dezenas de clássicos – aquilo que os americanos chamam de standards, canções que passam a fazer parte do repertório básico da cultura de todo um país. Músicas que mesmo os mais jovens reconhecem, no mínimo porque os pais ouviam, tendo por sua vez aprendido a gostar delas com os seus pais; que são regravadas pelos artistas mais jovens, e se eternizam. “Rosa”, por exemplo, virou trilha sonora de novela na voz de Marisa Monte. “Aos Pés da Cruz”, de Marino Pinto e José Gonçalves, e “A Primeira Vez”, de Bide e Marçal, são algumas das músicas gravadas por Orlando que estão no repertório de João Gilberto – que aliás, nos últimos 20 anos, pelo menos, tem gravado basicamente músicas dos anos 30 e 40. Alguns sambas e marchas de carnaval não há quem não saiba cantar – como, por exemplo, “Malmequer”, de Newton Teixeira e Cristóvão de Alencar, “Abre a Janela”, de Roberto Riberti e Arlindo Marques Jr., “Meu Consolo é Você, de Nássara e Roberto Martins, “A Jardineira”, de Benedito Lacerta e Humberto Porto, ou a genial “Alegria”, de Assis Valente, de quem Caetano tomou emprestados os versos “Minha gente era triste, amargurada/ inventou a batucada/ pra deixar de padecer/ Salve o prazer, salve o prazer”
“Carinhoso”, o hino dos bêbados desafinados, ressurge majestosa
Um caso à parte é “Carinhoso”, de Pixinguinha e João de Barro, a primeira das 22 músicas do primeiro CD, e a única que subverte a rigorosa ordem cronológica da data de gravação seguida por todas as demais 65 faixas da caixa. Para qualquer brasileiro de mais de 20 e menos de 60 anos, “Carinhoso” vem associada aos coros desafinados dos bêbados ou amadores que sempre teimam em cantá-la em qualquer reunião de fim de ano, formatura ou simples roda de bar. Pois com Orlando “Carinhoso” ressurge com sua beleza majestosa intacta, e rapidamente nos esquecemos dos coros de bar.
Também é impressionante a quantidade de canções de dor de cotovelo, aquilo que os americanos chamam de torch songs. Vinte e nove das 66 canções falam de amores desfeitos, histórias trágicas, sonhos que terminaram em soluços. Nessas letras surgem aquelas palavras e imagens à la parnasianismo que, a partir de Noel Rosa, a música brasileira desprezou. Estrofe merencória. Eleva o estro. Anjos liriais. Verbenas. Seios alabastrinos. (Mas disco não é cultura? Quem quiser conhecer pode ir ao dicionário. Aprender é bom.)
Fantástico é ver como essas expressões que fariam a felicidade de um Olavo Bilac saem fáceis, fluentes, simples, da boca de uma pessoa que mal se alfabetizou. Orlando fez só o primeiro ano primário, e abandonou a escola para ajudar a mãe no sustento de casa. A história pessoal de Orlando, barra pesada e cheia de tragédias, que já mereceu duas biografias (O Cantor das Multidões, de Jonas Vieira, de 1985, e Nada Além, de Jorge Aguiar, deste ano, 1995), vem bem muito bem contada no texto de Ruy Castro, no livreto que acompanha a caixa.
“Um país que produziu Orlando Silva tem obrigações superiores”
Em um texto escrito para o jornal O Globo na semana do lançamento da caixa, Caetano, que já na década de 60 falava da “linha evolutiva” da música brasileira, joga a pá de cal naqueles mitos imbecilizantes nos quais Roberto Menescal ainda acredita. Ele diz: “Ninguém pode entender bem a MPB se não entender a bossa nova; ninguém pode entender a bossa nova sem entender João Gilberto; ninguém pode entender João Gilberto sem ouvir Orlando Silva. (…) Sem dúvida, foi por tê-lo ouvido que João sentiu a responsabilidade de radicalizar: um país que produziu Orlando Silva tem obrigações superiores.”
A arte, no entanto, é sempre maior que a indústria que lucra com ela. A RCA Victor, hoje BMG-Ariola, simplesmente não tem mais as fitas master das 152 gravações feitas por Orlando Silva na gravadora, no período áureo de 1935 a 1942. Assim, o som que se ouve nos CDs tem como fonte os velhos discos de 78 rotações; foi feito um tratamento caprichadíssimo, com toda a parafernália da tecnologia moderna, para se obter o som dos CDs – mas a base, os 78 rpm, obviamente não tem a riqueza sonora que teriam as fitas originais de estúdio. Milagre a tecnologia ainda não faz. Os finais das músicas são às vezes abruptos (a chiadeira nos finais dos 78 rpm era um horror, e não haveria jeito de filtrá-la totalmente). Ouvido através de fones, o som fica opaco, sem brilho, sem corpo. Aí aparece a grande diferença entre as duas melhores e mais ricas músicas populares do mundo. Qualquer gravação de Billie Holliday nos anos 30, ou de Bessie Smith nos anos 20, nos chega perfeita em CD.
Apesar desse problema, que de resto a gravadora procurou compensar com um cuidado primeiro-mundista na apresentação da caixa, fica a esperança de que a indústria vasculhe os seus baús (ou os baús dos colecionadores, que tratam a arte melhor que ela) e produza novas caixas. Que venham Chico Alves, Noel Rosa, Carmen Miranda, Nelson Gonçalves, Luiz Gonzaga. Para verificarmos de novo que tudo é processo, evolução, e os mais novos felizmente aprendem com os mais velhos. Ou sobretudo para que, simplesmente, seja possível curtir em CD a música brasileira, tão rica e bela pré quanto pós-bossa nova.
A historinha por trás do texto
A internet estava começando no Brasil, em 1995, e a Agência Estado, a agência de notícias do grupo O Estado de S. Paulo, foi uma pioneira na internet brasileira. Eu trabalhava na Agência pela segunda vez, naquela época (tinha estado lá entre 1988 e 1992, tinha saído, passeado um pouco fora da S.A., e estava voltando naquele ano de 1995), e me pediram para fazer um texto sobre a caixa de CDs recém-lançada de Orlando Silva para publicar no site da Agência na internet. Era um frila, um free-lance, um trabalho por fora do horário do expediente normal. Foi – constato isso agora, em 2009, ao publicá-lo neste site – meu primeiro texto para a rede.
que texto maravilhoso,sempre lamentei a pouca atenção que é dada aops nossos verdadeiro ídolos da mpb era do rádio,claro que importamos muito materrial de ótima qualidade,mas,não damos a devida importância ao nosso produto,são tão pouco lembrados nossos talentos que já se foram,que pena que é assim,mas,vamos esperar que essa situação seja corrigida
Alo gente amiga uma pena que eu não alcasei o trabalho do astro da musica brasileira ; o orlando silva foi e sera um astro da musica brasileira;o compositor vinin viana sempre para compor busco ispiração no orlando;;;
O compositor vinin viana esta com um novo trabahlho, um cd com 15 musica todas de autoria do vinin viana ; a obra do vinin viana esta no youtube. para asistir o trabalho do vinin viana e so escrever vinin viana no google ou no youtube ;
c
obrigado; abraço vinin viana
compositor.vininviana@yahoo.com.br
Esta caixa de CDs é um belo apanhado de Orlando Silva no apogeu de sua forma vocal, somada aos CDs do selo Revivendo, que também tem se esforçado em recolocar estas preciosidades no mercado. Ainda em outubro passado a gravadora dos Bargs lançou uma coleção em 3 CDs de Orlando Silva com gravações já relançadas anteriormente e outras ainda inéditas em CD. Estes originais são muitíssimo melhores do que as constrangedoras regravações que Orlando cometeu o equívoco de fazer dessas músicas, a partir do final dos anos 1950.
Que fita master que nada, Sérgio! Naquele tempo não existia nem fita magnética, e a gravação era feita diretamente na matriz de cera. E as gravadoras simplesmente não guardavam essas matrizes, daí não possuí-las no acervo. O pouco que se conservou de tudo isso foi graças a reedições que começaram a ser feitas em LP, ainda nos anos 1950. No caso de Orlando Silva, houve poucas reproduções de seus 78 rpm em vinil, e ele preferia regravar essas músicas, já sem a mesma voz de antes e com resultados inferiores. Esta caixa, somada aos CDs do selo Revivendo, reconstitui maravilhosamente o período áureo do Cantor das Multidões.
Gostaria de obter a caixa com 03 cds mais um livro de Orlando Silva
Belo texto. Justo, em grande medida, qdo desmistifica a condição de berlinda intocável da bossa na mpb. Isso é bobagem que só alimenta o ego de muitos bossanovistas que padecem de obnubilação de consciência. Quando João Gilberto (um bossa de verdade)setencia que, “um país que produziu Orlando Silva tem obrigações superiores”. Para bom bossanovista meia palavra basta. Basta de asneira! Viva Orlando Silva, voz que dignifica a música brasileira.
Carlinhos lyra,Nelsom motta e Nara leão não gostavam dos artistas pré bossa-nova.Puro inveja,quem não queria ter a voz de um Vicente celestino,Cauby Peixoto e Ângela maria?Só no Brasil que déficit-vocal virou qualidade.
Parabens pelo texto. muito esclarecedor.
Poderia fazer uma comparação direta entre os cantores orlando silva e nelson gonçalves para eu poder entender melhor as diferenças entre os dois na sua opinião. Muito agradecido desde de já.
Ótimo texto.