Para abrir o coração dos homens

Os protagonistas são todos homens, adultos, instruídos, com dinheiro no banco. Durante três dias, eles se reuniram em um local isolado, no meio do mato, a menos de 70 quilômetros do Centro de São Paulo, e viveram cenas como estas:

* O homem olha demoradamente dentro dos olhos do outro, à sua frente, e diz: ”Eu sou seu pai, eu sou seu irmão, eu sou seu filho”. Ele responde com a mesma frase. Em seguida, cada um troca de parceiro, olha demoradamente dentro dos olhos do outro, e diz ser seu pai, seu irmão, seu filho. Depois que cada um dentro do salão repete esse ritual com todos os demais, formam-se pares, e cada par se abraça. Ouvem-se suspiros fundos. Os pares se desfazem, formam-se novos pares: novos abraços, novos suspiros.

* Todos formam um círculo ao redor de uma vela no chão, cercada por pétalas de flores cor-de-rosa e cartas como de um baralho, com figuras de animais. Dão-se as mãos, mantendo os polegares voltados para a esquerda. O círculo caminha primeiro para a esquerda, durante alguns minutos, depois para a direita, depois para a esquerda, enquanto todos repetem cinco vezes o som “hêi” e depois uma vez o som “hôu” – hêi, hêi, hêi, hêi, hêi, hôu, hêi, hêi, hêi, hêi, hêi, hôu, hêi, hêi, hêi, hêi, hêi, hôu, hêi, hêi , hêi, hêi, hêi, hôu.

* Agora ao ar livre, à noite, forma-se um círculo ao redor de uma fogueira; ritmadamente, os homens lançam o pé e o braço direitos para dentro do círculo, em direção à fogueira, enquanto repetem no mesmo ritmo: “Eu sou / hôu. Eu sou / hôu. Eu sou / hôu”. O ritual dura mais de uma hora. A certa altura, pede-se que todos tirem a roupa.

* Depois desse ritual em torno da fogueira, um a um, os homens deitam-se no chão durante alguns segundos e em seguida entram em uma choupana pequena e baixa, em forma de iglu, construída com bambus e coberta por lona e plástico para impermeabilizar o ambiente interno. Todos apertados lá dentro, os corpos nus encostando na terra do chão, nas folhas de bambu às costas e nos homens ao lado, no calor escaldante provocado pelas pedras retiradas da fogueira, tem início uma jornada de perdão. Um a um, os homens enunciam suas culpas, e pedem perdão por elas. Ao final da fala, cada um diz: “Hêi!” E os demais respondem em coro: “Hôu” – enquanto mais água é lançada sobre as pedras incandescentes, aumentando o vapor, o abafamento, o calor sufocante.

        Parece adulto brincando de escoteiro, parece coisa de veado

Marie Claire, capaParece um exótico piquenique. Parece um grupo de adultos brincando de escoteiro. Parece coisa de veado, diria muita gente. Eram homens tentando melhorar – tentando se conhecer mais, tentando compreender seus sentimentos, seus medos, suas angústias, sua identidade. E era também a chegada oficial ao Brasil de um fenômeno que cresce sem parar, do outro lado do Equador, embora muito pouco conhecido aqui – o movimento dos homens.

Nos últimos 30 anos, o movimento feminista mudou a face do mundo, ou no mínimo de boa parte dele. Foi “o único movimento social a respeito do qual se pode hoje dizer que teve êxito”, como disse o filósofo alemão Jürgen Habermas. Criaram-se dezenas e dezenas de publicações para discutir a identidade feminina, escreveram-se centenas, milhares de artigos, teses, livros, houve cursos de todos os níveis e de todos os tipos, o cinema está cheio de filmes sobre a nova mulher. Houve até o backlash, a contra-reação, que rendeu novos livros, novos artigos, novas reflexões. E os homens? “Os homens ainda têm tudo para dizer sobre a própria sexualidade”, diz a escritora francesa Hélène Cixous. “O que é masculino? Eis uma pergunta à qual as sociedades ocidentais já não sabem responder”, diz o filósofo francês Alain Finkielkraut. “Podemos nos surpreender com o silêncio dos homens desde o início desta mutação extraordinária, que começou há 20 anos. Nem livros, nem filmes, nem reflexões profundas sobre sua nova condição. Permanecem mudos, como que paralisados por uma evolução que não têm condições de controlar”, diz a socióloga francesa Elisabeth Badinter. “Os homens continuam sendo analfabetos na cultura do pessoal”, diz o escritor italiano Primo Moroni. “A cultura masculina é alheia e hostil ao universo sentimental, emocional”, diz a jornalista italiana Marisa Rusconi.

Por causa de todas essas constatações, na década de 80, nos Estados Unidos, Inglaterra e outros países da Europa, começou-se a discutir o que é ou deve ser a nova identidade masculina. Começaram a aparecer livros – Ser HomemO Paradoxo da Masculinidade, Por Que os Homens São como São, João de Ferro. E foram surgindo as terapias de grupo, os worshops, os men’s groups.

        Um repórter no meio do grupo

Craig Gibsone, um australiano de 51 anos radicado na Escócia há mais de dez anos, dedica-se a conduzir esses “grupos de homens”. Este ano, ao dirigir o primeiro deles já realizado no Brasil, permitiu que o repórter de Marie Claire participasse. Em parte, disse, a permissão foi dada exatamente por se tratar de uma revista feminina. Craig acha que as mulheres são aliadas fundamentais; muitas vezes incentivam seus maridos ou companheiros a participar desses trabalhos do movimento dos homens. Porque, quando voltam, voltam melhores. “Em geral”, diz ele, “quando um homem volta de um workshop desse tipo, sua mulher costuma dizer: “Você mudou, está diferente. Está me tocando de uma forma diferente, melhor.”

O grupo que se reuniu em uma pousada na Serra do Mar, no município paulista de Juquitiba, para o primeiro men’s group no Brasil, tinha 19 homens, contando com Craig, e com o terapeuta Roberto Ziemer, que servia de intérprete. Apenas dois desses 19 tinham menos de 30 anos; todos os demais tinham entre 32 e 51 anos. Oito dos 19 eram terapeutas, psiquiatras, psicólogos ou médicos. Sete dos 19 manifestaram, de alguma forma, preferências homo ou bissexuais. Onze dos 19 já foram ou estão casados – e pelo menos três estão no segundo casamento. Dezessete dos 19 tinham experiências anteriores de terapias de grupo ou workshops em busca de maior autoconhecimento.

Marie Claire, HomensO workshop consistiu de sessões em ambiente fechado – um grande salão de estar de onde foram retirados todos os móveis – e em trabalhos ao ar livre, que culminaram na dança em volta de uma fogueira e na sauna indígena apresentadas no início deste relato. Durante todo esse tempo, cumpriam-se rituais indígenas, em geral baseados em costumes de povos da América do Norte. É uma prática comum aos diversos grupos do movimento de homens. Parte-se do princípio de que os homens, especialmente os da civilização ocidental, pós-industrialização, afastaram-se tremendamente de tudo o que é natural, e de que os povos indígenas sabiam se relacionar em paz com a natureza e entre si; assim, repetir rituais que eles usavam pode ajudar no trabalho. “Criamos rituais não para rumarmos para o passado, para voltarmos a ser selvagens, mas para tentar expressar de um homem para outro a nossa masculinidade, que é forte e poderosa”, diz Craig.

        Para puxar a energia do céu – e o repórter se sente ridículo

A primeira reunião aconteceu no salão de estar, a partir das 8 horas da noite. No chão do centro do salão, Craig havia montado aquele altar: uma vela acesa, as pétalas de flores, cartas como as de baralho, com a face principal voltadas para baixo. As pessoas sentavam-se em almofadas no chão, formando um círculo em torno desse altar. Craig pediu que todos ficassem de pé, para o primeiro dos diversos rituais indígenas que povoariam o workshop. As mãos eram erguidas bem para o alto, enquanto todos diziam “iahai”, e em seguida para baixo, enquanto se dizia “iahou”. O ritual, explicou Craig, era para puxar energia do céu e trazê-la para cada pessoa.

Foi a primeira de diversas e diversas vezes em que eu me senti absolutamente ridículo, durante o workshop. Mas, de uma maneira geral, com poucas exceções, as pessoas entravam perfeitamente no espírito da coisa, como se aquilo fosse absolutamente natural, fizesse parte de seu dia-a-dia – como se fosse tão comum quanto sucessivamente ajoelhar, ficar de pé e sentar durante uma missa católica, por exemplo. Poucas pessoas demonstravam um certo embaraço em participar desses rituais que seus pais, avós e bisavós jamais realizaram.

Foi feita então a apresentação de todos os participantes. Craig pediu que cada um chegasse para o centro do círculo, respirasse bem, até se sentir preparado e à vontade, olhasse nos olhos das pessoas em volta e repetisse seu nome três vezes. Depois que cada um dizia seu nome, o grupo inteiro repetia também três vezes.

Craig explicou sobre as cartas colocadas em volta da vela, no centro do círculo. Cada carta representava um animal de poder, e cada pessoa pegaria uma carta. O animal de poder tirado passaria a ser o aliado de cada participante, na sua jornada através dos dias do workshop. Depois que cada um escolheu a carta com o seu aliado animal, repetiu-se o ritual de apresentação, agora usando o nome do aliado.

Em seguida, Craig apresentou algumas regras do trabalho e compromissos exigidos:

– não evitar a dor;

– não usar álcool ou drogas até o final do trabalho; o cigarro seria permitido, mas não nos momentos de reunião de trabalho;

– nenhum sexo, com nada (o tradutor disse “nenhum sexo, com ninguém”, o que, obviamente, é diferente);

– não deixar sair do grupo as experiências pessoais ali vividas.

        Contato ocular, contato físico

sweat2“Uma das coisas que pretendemos é quebrar essa barreira, essa dificuldade que os homens têm da proximidade física-carinhosa, mas não sexual entre eles”, explicou Craig. O primeiro exercício nesse sentido foi o ritual do contato ocular – aquele em que cada participante olhava dentro dos olhos do outro, e depois de outro, até completar todo o grupo. Ao final desse processo, Craig pediu que todos abraçassem cada um dos demais. Um abraço forte, longo, carinhoso.

Assim como eu mesmo, outras pessoas do grupo (mas não a maioria) mostravam desconforto com a situação, não agüentavam durante todo o tempo esse “jogo do sério” e olhavam para os lados. Mas não era, realmente, a maioria. E, no dia seguinte, ao se repetir o mesmo ritual, as pessoas pareciam menos desconfortáveis do que na primeira vez.

De novo formado o círculo em torno do altar, Craig explicou sobre o tallking stick, o bastão de falar, outra tradição de tribos do Norte. O bastão de falar fica no centro do círculo. Quem pega o bastão e o leva para o seu lugar está com a palavra, até dizer “hei!”. Nesse momento o grupo responde: “Hôu!”. O bastão de falar seria usado pela primeira vez a partir daquele momento, para a leitura das cartas aos pais, requisitadas aos participantes na inscrição para o workshop.

Algumas poucas cartas haviam sido escritas de maneira superficial, apenas para se cumprir a tarefa. Mas boa parte, bem mais da metade delas, trazia claras marcas de seriedade. Mais ainda: abria e remexia feridas, algumas bem profundas, do relacionamento daqueles homens com seus pais. Embora as cartas em geral terminassem com declarações de amor e saudade, de uma forma ou outra traziam acusações, queixas, reclamações. Falavam do autoritarismo, da repressão e, sobretudo, da ausência de conversa, de carinho, de atenção, da ausência pura e simples – os homens saem para ganhar a vida e muitas vezes se perdem e perdem a ela própria, vida, e perdem a possibilidade de se relacionar com os filhos que fazem e deixam em casa.

Muitos choraram ao ler suas cartas. Alguns baixinho. Outros com soluços abertos. Eram amparados e abraçados pelos outros homens. A leitura das cartas avançou até o final dos trabalhos, por volta da meia-noite, e prosseguiu na manhã do segundo dia. Foi quase uma sessão de terapia em grupo formal, só que aqui e ali povoada por rituais de danças indígenas.

        A grande viagem do cérebro para o coração

No quarto para quatro pessoas, com dois beliches, comentei que estávamos, nós, em geral na curva e na crise dos 40, alojados em condições de exército, normalmente aceitáveis quando se tem 18 anos. Meus colegas de quarto não pareciam achar tão desconfortável quanto eu. Aceitavam as condições do alojamento dos 18 anos com a mesma naturalidade com que a maior parte do grupo aceitava participar de todos os rituais, por mais inusitados que fossem.

No segundo dia, depois da continuação da leitura das cartas ao pai, e de novo ritual do contato ocular e dos abraços de todos em todos, Craig fez alguma considerações, entre elas a que talvez seja a chave do que se pretende com aquele workshop e com o movimento dos homens, de uma maneira geral: “A grande viagem que nós homens estamos tentando fazer é daqui (a cabeça) para cá (o coração) “.

“Nós, do mundo industrial do Ocidente, em particular, perdemos, algumas centenas de anos atrás, o elo entre os homens – a não ser através da garrafa de cerveja ou de guerras”, disse. “O que queremos aqui é retomar algo da época em que os homens aprendiam a ser homens com os homens. Vamos fazer como os índios fazem com seus filhos. Eles os levam para um lugar desconhecido, às vezes hostil, como a floresta ou o deserto, para ensiná-los a ser homens, e a se encontrarem a si próprios dentro do ambiente estranho.”

A partir daí, as atividades se voltaram para a preparação do sweat lodge, a sauna indígena usada durante centenas e centenas de anos na América do Norte, e que o movimento dos homens adotou como um de seus rituais de iniciação. Todos saíram para cortar lenha e carregar as pedras que primeiro ficariam sob a fogueira, e depois seriam levadas, incandescentes, para um buraco feito no centro da cabaninha de bambu. Esse trabalho braçal durou cerca de duas horas. Craig pediu que tudo fosse feito em silêncio e respeito à natureza: “Peguem cada pedra, cada pedaço de madeira, como se tocassem uma amante”.

        Aura purificada, os homens ficam pelados

No intervalo para o jantar, entre o final desse trabalho de preparação e o ritual do sweet lodge, algumas poucas pessoas demonstraram um certo desconforto. Houve frases como estas:

– Eu não vou contar pra ninguém o que nós fizemos aqui: as pessoas iam achar que eu fiquei doido.

– E fazer isso tudo com a cara limpa, sem droga nenhuma!

– Eu vou contar uma parte, e dizer que a partir de um momento não lembro de nada; entrei em transe, estado de consciência alterada.

sweat4Eram 19h30 quando os 19 homens saíram de seus quartos e rumaram para o lugar do sweet lodge. Usavam roupas velhas e sujas, devido ao trabalho da tarde; levavam toalhas para a sauna, e alguns instrumentos de percussão, que foram sendo tocados no caminho. Enquanto as duas pessoas escolhidas para cuidar da fogueira começavam a trabalhar, os demais formaram uma corrente oval em volta da fogueira e do espaço entre ela e o sweat lodge. Craig ia ensinando algumas danças indígenas, como aquela dos cinco hêis intercalados por um hôu, e a dos pés e braços direitos lançados em direção à fogueira, enquanto se repetia: “Eu sou / hôu”.

Durante o longo tempo que durou essa dança, foi executada também uma cerimônia de limpeza, purificação da aura. Chama-se smudging – algo como defumar, purificar com fumaça. Queima-se um pedaço de caule de uma planta e, com uma pena de ave, lança-se a fumaça sobre cada pessoa.

Aura purificada, os homens ficaram pelados. As pedras que haviam sido colocadas sob a fogueira estavam, a essa altura, vermelhíssimas de calor. Craig foi o primeiro a entrar no sweat lodge; entrou vindo do lado esquerdo da porta – e, antes de entrar, deitou-se no chão, por um rápido instante, dizendo: “ To my relations”, e foi sendo seguido pelos demais. Lá dentro, assim como todos os outros que o seguiram, fez todo o percurso em torno do buraco central, no sentido horário, até chegar perto da porta, pelo lado direito.

Os dois homens escolhidos para cuidar da fogueira eram então os únicos a ficar do lado de fora do sweat lodge. E passaram a levar para a porta de entrada as pedras incandescentes. Craig recebia uma a uma dizendo: “Bem-vinda, bisavó”, e as colocava no buraco feito no centro do sweat lodge. De tempos em tempos, lançava sobre elas uma caneca d’água, que imediatamente se transformava em vapor. Em pouquíssimos minutos a sauna indígena estava quentíssima. Os dois últimos homens entraram, e a porta da sauna foi fechada.

Craig havia prevenido que haveria três sessões da sauna indígena – como os índios americanos faziam. Na primeira, todos fariam proclamações pelo perdão. (“Esqueçam sua formação católica. Não vamos pedir perdão a Deus. Vamos, como os indígenas, pedir perdão a nós mesmos, e depois aos outros”.) Na segunda, fariam declarações pela família. Na terceira, pelo planeta, por todas as formas de vida.

Um calor sufocante – e os homens vão pedindo perdão

No calor sufocante, os homens iam pedido perdão. Alguns em frases curtas – “Peço perdão por ter traído tantas vezes o meu namorado fulano”, disse um deles, por exemplo. Outros faziam enunciados longos, tornados insuportavelmente mais longos pelo calor e pelo abafamento. Muitos pediram perdão por não estarem se dedicando como deveriam aos filhos, às mulheres. Terminada a primeira sessão, quase todos entraram no riacho de águas geladas que ficava bem próximo ao sweat lodge. Na terceira sessão, foram feitas várias orações de agradecimento ao movimento dos homens, por ter tornado possível um melhor conhecimento de cada um, e do mundo.

Depois da sauna, formou-se novamente o círculo em torno da fogueira e do caminho entre ela e a porta do sweat lodge, para uma nova rodada de dança ritual.

Craig pediu, então, que todos se reunissem, dentro de poucos minutos, no salão das reuniões para que rapidamente, se fizessem comentários sobre a experiência. Era mais de meia-noite, estavam todos exaustos, tanto que Craig dispensou a formalidade do bastão de falar. Eis algumas expressões e frases usadas para se descrever o que cada um sentia naquele momento:

– sensação de liberdade

– solto e limpo

– flutuando

– contente comigo

– renovado

– feliz

– sensação de força, mas não de força física; de força interna, interior

– me senti parte de uma irmandade masculina

– leve, confiante, com uma confiança que nunca tinha sentido em mim

– alguma coisa nova aconteceu; sinto como se estivesse começando algo novo.

Na manhã do terceiro e último dia, esses homens assim renovados, confiantes e fortes participaram de uma sessão de relaxamento. Foram formados grupos de três; ao final de cada um dos exercícios de relaxamento, os grupos de três permaneciam abraçados por um tempo.

Círculo formado novamente, Craig pediu relatos, mas relatos que viessem do coração, e não do cérebro. Os relatos vieram entusiasmados:

– Eu senti uma energia, uma sensação de proteção, carinho, uma coisa quente, gostosa, potente, com força, uma força masculina e macia. Foi uma sensação tão completa, tão inteira, de estar integrando com os outros. Foi uma experiência muito nova, muito marcante.

– Sonhei que todos nós tínhamos os dedos em brasa, como as pedras – sim, como o E.T. – e, que os nossos dedos tinham o poder de curar.

– Eu sempre tive muita dúvida sobre essa coisa de sexualidade. Será que eu sou homem? Onde está escrito isso? Eu não assinei contrato nenhum. Para você se integrar aos outros homens, você tem que pegar, tocar, fazer carinho. Talvez por isso tenha passado a ter experiências homossexuais. Eu sempre tive aquela coisa masculina, que me atrapalhou muito, até no futebol, de ficar nu na frente de outros homens – aquela coisa do “oh, meu pau é maior ou menor que o dos outros”. Ontem à noite isso acabou. Eu fiquei nu diante de outros homens, e fiquei à vontade. Nesse exercício de relaxamento, ficou provado aqui que, se a gente estiver centrado no interesse de chegar ao ser interior do outro, a questão da sexualidade fica eclipsada. O contato que temos com as mulheres é diferente. O contato com os homens, ainda temos que aprender, que desenvolver. Mas, como vimos, é possível.

– Esse negócio de ficar pelado diante de outros homens é interessante. Assim como a coisa do carinho com outro homem. Eu descobri que posso ser eu. Se quiser abraçar ele, eu posso; se me chamarem de veadinho, foda-se – se eu quiser, eu abraço. Eu aprendi o que é ser homem: ser homem é fazer o que você quiser. Pode gostar de homem, de elefante, de mulher, não importa. Agora é usar essa experiência de liberalização e tocar em frente.

Depois dessa rodada de demonstração verbal das experiências, houve uma dança indígena, suave, a última em torno do altar no centro do círculo. Em silêncio, o salão foi limpo, as janelas abertas. E iniciou-se o trabalho de limpeza do lugar em que havia sido feita a sauna indígena. “O sweat lodge é uma catedral feita de elementos naturais, que em seguida devem ser devolvidos à natureza”, explicou Craig. Taparam-se os dois buracos abertos no chão. A madeira recolhida foi organizada. As cinzas da fogueira foram espalhadas pela grama.

Ao caminhar para o restaurante da pousada, depois da última cerimônia de limpeza, um dos participantes do workshop – um psiquiatra que trabalha com terapia sexual – comentou com outro psiquiatra: “Há pouco tempo, houve uma jornada de sexualidade, e uma pessoa notou o seguinte: em dois dias de trabalhos e discussões, em um encontro multidisciplinar, falou-se de todo os tipos de técnicas, de desvios e de problemas. Mas ninguém discutiu nada, ninguém disse uma palavra sobre sentimentos.”

Um dos relatos daquela manhã havia sido exatamente este: “Sempre tive muita dificuldade para colocar os meus sentimentos para fora. E aqui aprendi a fazer isso.”

É isso aí. Os homens começam a querer aprender o alfabeto da cultura do pessoal. De uma maneira desengonçada, talvez, mas começam a não ser mais alheios e hostis ao universo sentimental.

A historinha por trás do texto

Na verdade, a historinha por trás deste texto não é uma historinha – é uma grande história, cheia de diversos capítulos. Acho que ela mereceria um post específico – que talvez ficasse imenso, e não interessasse a ninguém, a não ser eu mesmo.

Não sei como resumir histórias, mas vou tentar.

No segundo semestre de 1992, eu tinha saído da Agência Estado; Mary e eu tínhamos aberto uma firma, a Casa do Texto, para ver como era a experiência de viver de free-lances. E um dia Lucy Dias, que editava Comportamento na Marie Claire, me ligou perguntando se eu toparia participar de um workshop e escrever sobre ele.

Sou um péssimo repórter. Quer dizer: na verdade, nunca soube ser repórter. Sempre fui do outro lado, o lado de dentro da redação, o sujeito que caneta, reescreve, acerta o texto dos repórteres. Mas eu tinha acabado de deixar, por minha conta e risco, um emprego estável, um grande salário, para viver a experiência de ser free-lancer, e aceitei o desafio. Fui cobrir o troço com a cara e a coragem. A coragem era pouca, é bem verdade – depois de alguns instantes dentro daquela sauna indígena-ridícula, pedi pra sair. O tal do Craig Gibsone achou estranho, mas eu pretextei uma taquicardia, e casquei fora. Na verdade, nunca gostei de sauna – e aquela com um bando de homens teatralmente falando de suas culpas era meio demais da conta. 

Fiz, no entanto, muitas anotações ao longo dos dias do workshop – cuidadosas, sérias anotações. O combinado era não revelar quem tinha falado o que, e segui o combinado. Mas tudo o que está dito no texto acima é rigorosamente real; não há uma vírgula que não tenha acontecido de fato.

Lucy adorou o texto. Foi publicado no número 20, de novembro de 1992, da então vibrante, ótima, sensacional Marie Claire, a versão brasileira criada por Regina Lemos e uma bela equipe montada por ela da histórica revista francesa.

E aqui é preciso dizer umas duas coisinhas. A edição que Lucy Dias fez foi primorosa. Sacou um título brilhante, perfeito para a revista e para a matéria. E, trabalhando com Mirian Bertoldi, a Mimi, editora de arte, fez páginas atraentes sem qualquer ilustração – já que, obviamente, não havia fotógrafo durante os três dias do workshop. As fotos que botei aqui no post – um sweat lodge original indígena, e um sweat lodge do men’s movement evidentemente não teriam sentido na revista. Aqui, acho que têm. Ilustram bem como a tentativa – em si boa, positiva, é claro – acaba virando um programa de índio.

Bem. Alguns meses antes que Lucy me convocasse para fazer a matéria, eu, naquela época profundamente infeliz na Agência Estado, tinha perguntado a Regina se ela não teria um emprego para mim na Marie Claire. Ela tinha reagido com alguma fúria; tinha dito algo do tipo como: “Como assim, eu trabalhar com você, ter você ao meu lado todo dia? O que você acha que o Antônio vai pensar? O que você acha que a Mary vai pensar?”

Uns dois meses depois que o texto do movimento dos homens foi publicado, Regina me perguntou se eu toparia trabalhar na Marie Claire, logo abaixo dela, como redator-chefe. Tinha seus planos – ela sempre tinha planos. Queria preparar sua própria saída, para tocar projetos especiais, a começar pelo livro que escreveria para a Globo, Quarenta, a Idade da Loba; achou – penso eu – que eu poderia ajudar no psicossocial da redação, no rito de passagem.

Fiquei na Marie Claire dois anos. Tirando fora os últimos poucos meses, depois que Regina deixou a direção de redação, foi uma experiência em tudo e por tudo gratificante.

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