Há um ano e pouco, Cauby Peixoto disse que resolveu dar menos valor à popularidade, e se interessar mais pelo prestígio (este texto é de 1982). “Posso acordar amanhã totalmente esquecido. O prestígio é diferente; resiste ao tempo”. Gravou um LP (Cauby, Cauby) com músicas de compositores “de prestígio”, como Caetano Veloso e Chico Buarque. Conseguiu uma popularidade quase igual à dos tempos dos programas de auditório da Rádio Nacional, na década de 50 – e muito prestígio.
Agora, ao lançar seu novo disco, Estrelas Solitárias, também pela SomLivre, diz: “Parei com uma porção de exageros. Eu amadureci”. E há quem concorde com ele. De fato, é inegável que o Cauby de hoje não canta exatamente do mesmo jeito com que cantava “Conceição”, gravada em 1956. Ele tenta se segurar um pouco – afinal, a música mudou muito, de 1956 para cá, e Cauby sabe que o público que ele deseja atingir agora, um público mais exigente e sofisticado, não é muito chegado àquele velho estilo grandiloqüente.
Mas o que este Estrelas Solitárias mostra é que, apensar da intenção, e apesar dos aplausos de gente “de prestígio”, Cauby Peixoto não mudou muito.
A voz é linda, evidentemente. Poderosa, extensa, forte, afinadíssima. Mas afetada, terrivelmente afetada. Cheia de floreios, volteios, salamaleques. Uma voz com o ranço desagradável de uma época que já deveria ter acabado há muitos e muitos anos – uma época em que ainda não havia sido descoberto o valor da simplicidade e da naturalidade, e em que grande cantor era aquele que conseguia prolongar o mais possível a voz durante uma nota, uma sílaba.
E está lá, ao longo de todo o seu novo disco. Cauby vai cantar, por exemplo, o seguinte verso imbecil: “Me viciei por ser só teu”. Sai “Me viciei por ser só teeeeeeeu”.
Ah, sim, há também os suspiros. Um bom suspiro, antigamente, arrancava gritinhos das meninas no auditório? Então, dá-lhe suspiro: “Se eu não tiver – aaaaah – no corpo o teu prazer”.
Sobram trinados, suspiros, plumas, paetês e lantejoulas, ao longo de todas as 12 faixas do disco. Faixas, na esmagadora maioria, tão antigas, tolas e dispensáveis, como trinados, suspiros, plumas, paetês e lantejoulas. São, quase sem exceção, boleros e baladas que seguem um figurino velho e desgastado, de uma mesmice estarrecedora.
Como estamos em 1982 e não mais em 1956, há muitos teclados eletrônicos – tantos, e tão chatos, que dá até para ter um pouco de saudade de 1956 – arranjados por Lincoln Olivetti, Eduardo Souto Neto e (pena) César Camargo Mariano. Há compositores “de prestígio”, como Gonzaguinha, Ivan Lins, Fagner, Johnny Alf, Marcos e Paulo César Valle, mas isso de pouco ou nada adianta.
“Estrelas Solitárias”, por exemplo, é uma das piores músicas da carreira de Gonzaguinha; Ivan Lins poderia muito bem jamais ter escrito “História de Amor”; a melodia de Fagner para os versos da portuguesa Florbella Espanca, ainda que melhor do que a maioria das músicas do disco, é um momento menor do compositor cearense; e os irregulares irmãos Valle estão no fundo do poço com a melosa “Vou Enlouquecer”. Algumas pérolas cometidas para a voz de Cauby Peixoto: “na febre da paixão”; “nada mais me resta sem você”; “as portas do teu coração”; “transformar em flores os espinhos do chão”; “no limiar estou de novo sonho”; “já não sou mais aquele ser tristonho”. Novo, não? Altemar Dutra adoraria ter gravado isso.
Resta a incrível beleza de “Luiza”, de Tom Jobim, que consegue resistir aos floreios da voz do cantor. Só.
Agora, para quem gosta de plumas e paetês, não há dúvida nenhuma: é um prato cheio.
Um comentário sobre o texto
Esta resenha foi publicada no Jornal da Tarde, em 15/3/1982.
No período em que andei cometendo resenhas sobre discos e shows no velho e bom JT, meti o pau em poucas coisas. Minha intenção era mais dar informações do que muita opinião. Às vezes derrapei, como neste texto aqui, cheio de preconceitos contra o estilo feérico de Cauby Peixoto.
“Crítica”, especialmente de música popular, é uma grande asneira, como dizia Mick Jagger, e Caetano gostava de citar. Uma crítica de um espetáculo de teatro pode ser interessante – argumentavam os dois artistas –, já que os ingressos são caros, e as informações podem ajudar as pessoas a se decidirem se vão gastar aquele dinheiro com determinada peça ou não. Música todo mundo pode ouvir de graça no rádio – hoje em dia no computador, e daí para o MP3 player.
Os críticos metem o pau, e os artistas continuam. Hoje, quase 30 anos depois, Cauby continua cantando do mesmo jeito com que sempre cantou, e continua fazendo sucesso, e agradando a seu público.
E nem posso usar como desculpa o fato de que era jovem quando escrevi essas bobagens – tinha 32 anos, não era mais propriamente jovem. Fui apenas bobo.
Sérgio Vaz, eu pagaria com prazer a conta para você ver Cauby no Bar Brahma (ou em outro lugar, se não estiver mais lá) e escrever um texto sobre sua interpretação hoje. Será que afinal mudou? Ainda estará cantando Conceição? De que modo?
Considere-se pautado.
Sérgio,
ainda bem que não é só o tempo que passa. Não ficamos atrás. Nem pra trás.
Parabéns duplos: pelo texto aos 32, pelo comentário de hoje.
Você não era bobo. Nem tão jovem, concordo. Acontece que faltava o tempo para passar.
Beijo
Vivina
Um, eu achava o Cauby da estirpe do Pedrinho Mattar, do Liberace, dois pianistas que fazem (faziam, já que partiram) demagogia em suas interpretações, repletas de floreios,fru-frus, balagandans… Quanto a esses dois últimos, continuo com minhas restrições, embora não consiga mais ouvi-los, e de há muito. Mas quanto ao Cauby, mudei. O cara pode manter o seu (dele)estilo. E é de uma simpatia calorosa, de dar inveja. Fiqueiainda mais seu fã quando vi uma entrevista que ele deu ao Jô, uns dois, três anos atrás, se não me engano. Que tal aceitar o convite do Valdir e ir vê-lo no Brahma? Eu fui e gostei demais. Se quiserem a minha companhia, repetirei a dose.
Gostei da retratação,Cauby cantando “Conceição”, gravação de 56, é lindo de doer,em qualquer época.