É inteiramente absurdo, mas nada menos que sete dos 15 LPs que Gal Costa gravou em 17 anos de carreira estavam fora de catálogo, ausentes das lojas de discos. (O texto é de 1982.)
O reconhecimento de que Gal Costa é uma cantora excepcional é velho; tem praticamente a idade de sua carreira, que começou, no palco, em 1964, e, no disco, em 1965. (Mesmo antes disso, João Gilberto, o mestre, o guru, já havia dito que ela era a melhor cantora brasileira). Mais recentemente, nos últimos cinco ou seis anos, a cantora excepcional se transformou também em superstar, ídolo de multidões, uma das maiores vendedoras de discos do País; é hoje a segunda maior vendedora de discos da sua gravadora, a PolyGram (a primeira é Maria Bethânia); seu último LP, Fantasia, lançado em novembro passado, já vendeu mais de 400 mil cópias.
Absurdamente, no entanto, quase metade de sua discografia era inacessível ao público. Há poucas semanas, finalmente, a PolyGram resolveu diminuir um pouquinho esse absurdo, e colocou de novo nas lojas três dos antigos discos de Gal – Domingo, Gal Costa e Gal a Todo Vapor.
Domingo é de 1967, e é o primeiro LP de Gal (antes, ela havia apenas participado de uma faixa do primeiro LP de Bethânia, e gravado um compacto simples, na RCA) – e é também o primeiro LP de Caetano Veloso. Os dois dividem igualmente as 12 faixas (todas elas muito bonitas, hoje como em 1967), a maioria delas composta por Caetano. Os arranjos são de Dori Caymmi, Roberto Menescal e Francis Hime – delicados, suaves, agradáveis. A jovem Gal (ela estava com 22 anos), já era, na sua estréia em LP, uma grande cantora; uma cantora cool, intimista, voz branda, macia, controlada – seguindo à risca o modelo do mestre João Gilberto.
No texto da contracapa – que foi mantida, assim como a capa, idêntica à da edição original -, Caetano Veloso avisava: “Minha inspiração agora está tendendo para caminhos muito diferentes dos que segui até aqui”. De fato. No segundo semestre daquele mesmo ano em que Domingo foi lançado, Caetano apareceu com “Alegria, Alegria”, Gil apareceu com “Domingo no Parque”, e a música brasileira passou por uma de suas mais profundas transformações, somente comparável à gerada pela bossa nova.
Gal Costa, outro dos LPs que estão sendo relançados agora, já é um produto dessa transformação. Foi gravado em 1968, no auge do tropicalismo – embora tenha sido lançado no início de 1969. O repertório já não é mais meigo, doce, calmo, como era em Domingo. Os arranjos (de Gilberto Gil, do guitarrista Lanny e do genial maestro Rogério Duprat) já incorporam a guitarra elétrica, que na época era maldita na MPB; há intervenções de cordas que fazem lembrar a sonoridade moderna, vigorosa, de algumas obras dos Beatles. Gal estava diferente até na cara: tinha deixado crescer e encaracolar os cabelos. A voz da discípula de João Gilberto se soltava muito mais, atingia tons muito mais altos. Nesse disco estão algumas obras-primas, como “Saudosismo”, de Caetano (uma espécie de hino do tropicalismo, uma declaração de amor à capacidade e à coragem de ousar, de mudar, de fazer o novo), “Divino Maravilhoso”, “Baby” e “Não identificado”. Há participações especiais de Gil e de Caetano.
Gil e Caetano estavam no exílio, em Londres, quando foi lançado o álbum duplo Gal a Todo Vapor, gravado ao vivo no show de mesmo nome que ela apresentou no pequeno Teatro Opinião, no Rio, em 1971.
No disco aparecem, convivendo lado a lado, duas Gal Costas – a cantora intimista, linha João Gilberto, cantando clássicos como “Falsa baiana” ou Antonico”, e a cantora agressiva, forte (com o canto “explosivo, emocionado, rasgado, rouco, pura emoção”, como ela mesma diria muitos anos depois), abandonada contra a vontade pelos companheiros da aventura tropicalista, sozinha no palco para cantar a geléia geral brasileira naqueles perplexos anos de Garrastazu Médici.
“Era uma época de tentativa de liberação jovem, através do sexo, das drogas, do rock. Eu fazia um trabalho ligado à juventude. O canto rasgado e emocionado combinava com minha cabeleira black-power, as roupas agressivas”, diria há poucos meses a própria Gal.
Infelizmente, o disco que chega agora às lojas não é o álbum duplo original, capaz de mostrar integralmente a Gal Costa daqueles tempos. Por economia, pressa, desleixo ou desconsideração (para com o público e para com a sua grande vendedora de discos), a PolyGram resumiu em um LP os quatro lados do álbum original. Retirou faixas como “Pérola Negra”, “Mal Secreto”, “Luz do sol”, “Charles anjo 45”. Alterou a ordem original das faixas (destruindo, por exemplo, a seqüência perfeita de “Sua estupidez” e “Vapor barato”. Mudou, no selo, o próprio nome do disco, do original Gal a Todo Vapor para Gal Fatal (a palavra “fatal” aparece na capa assim como outras palavras apareciam em destaque na contracapa e nas capas internas, mas não é o título). E, pior ainda, teve a coragem de cortar o final de “Vapor barato”, originalmente a última faixa do álbum duplo, em que Gal berra como Janis Joplin. Um desrespeito.
E Gal é superstar, lota maracanãzinhos, vende centenas de milhares de discos…
Este texto foi publicado no Jornal da Tarde em 7 de junho de 1982
Interessante seu comentário de hoje. Outro dia mesmo, conversando com uma amiga, falamos sôbre o sumiço da Gal. Há muito não a ouço, nem mesmo na Rádio Inconfidência, emissora que toca quase só MPB. O som do meu carro fica constantemente ligado nela, já que meu aparelho para CDs não está funcionando. Comentamos: – Será que Gal deixou de cantar, está se dedicando somente ao filhote que adotou? Bom, isso não tem nada a ver, pois suas músicas estão aí, gravadas. Simplesmente não as colocam no ar. Realmente deveriam fazer álbuns completos de todo o seu trabalho (maravilhoso) e mandar ver. Você sabe que minha preferia é Bethânia, mas não posso deixar de valorizar a beleza da voz de Gal. É uma pena que gravem tantas coisas idiotas e deixem para trás uma cantora tão valorosa!
Ótima resenha,amo Gal Costa,mas só consigo ouvir suas gravações de estúdio,ao vivo eu só gosto de Elis Regina.