Um disco histórico, raro: 12 pérolas de Geraldo Pereira

A primeira grande qualidade do LP Geraldo Pereira, que o Estúdio Eldorado acaba de lançar (em março de 1981) como o quinto volume de sua série “Evocação”, é simplesmente o fato de ele existir.

Geraldo Teodoro Pereira é, sem qualquer dúvida, um dos maiores nomes da música popular brasileira. Para comprovar isso, basta lembrar as afirmações de gente como Pixinguinha, Ari Barroso, João Gilberto – e basta conhecer alguma coisa da obra vasta desse mineiro/carioca morto prematuramente em 1955, aos 37 anos de idade.

E é aqui que entra esta primeira importância do LP.

Também para a música, assim como para tantas outras manifestações da cultura e da história, o Brasil é um país de memória curta. Não existem à venda, nas lojas de disco, sequer os primeiros trabalhos de gente contemporânea, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão – para lembrar apenas alguns nomes mais importantes.

Sendo assim, sequer se poderia esperar que as gravadoras se lembrassem de colocar de novo no mercado as gravações feitas pelo próprio compositor Geraldo Pereira, entre 1945 e 1954, nos selos Continental, Sinter, RCA Victor e Colúmbia. Nem os discos com as versões originais das músicas de Geraldo Pereira, com os intérpretes de sua época, como Aracy de Almeida, Roberto Paiva, Isaura Garcia, Jorge Veiga, Quatro Ases e Um Coringa, Anjos do Inferno.

A obra de Geraldo Pereira que ainda se podia encontrar nas lojas de discos ficava, assim, esparsa por diversos lançamentos dos mais variados intérpretes contemporâneos. Gente, aliás, da maior importância, mas cujos discos nem sempre são fáceis de achar. “Falsa Baiana”, por exemplo, o primeiro grande sucesso de público do compositor, foi gravada originalmente em 1944, por Ciro Monteiro – e é preciso pesquisar com cuidado para encontrar nas lojas o padrinho e protetor de Geraldo Pereira cantando essa música; ela está ainda, na voz de Gal Costa, mas em gravação hoje só encontrável na coletânea A Arte de Gal Costa.

“Escurinho” foi gravada há relativamente pouco tempo (1974) por Chico Buarque, em seu show Tempo e Contratempo – mas o registro só aparece na coleção Palco Corpo e Alma, um álbum de três LPs da Polygram. Outras gravações, é verdade, permanecem em catálogo – como “Bolinha de Papel”, no LP de 1961 de João Gilberto, ou “Sem Compromisso”, gravada por Chico Buarque no LP Sinal Fechado, de 1974, ou ainda “Sinhá Rosinha”, que está no último LP, pela Ariola, de Cristina Buarque de Hollanda.

Reunida em um disco recente, no entanto, jamais a obra de Geraldo Pereira havia sido (com a única exceção do fascículo da coleção “Nova História da Música Popular Brasileira”, da Editora Abril – um disco, entretanto, que também não circula mais).

Assim, o LP do Estúdio Eldorado vem de fato preencher uma absurda lacuna na discografia brasileira. Ele permite que as novas gerações tomem conhecimento desse músico e letrista que João Gilberto definiu como “um inovador de nossa música”; que fez Ari Barroso admitir não ser um sambista, se comparado a ele; que emocionou Pixinguinha por criar melodias inteiramente originais para a época, como lembra o jornalista Moacyr Andrade, na contracapa do disco. E o LP, é claro, permite que os mais velhos, ou de ouvidos e memória mais atentos, reencontrem a beleza de 12 das cerca de 100 obras que o compositor deixou em escassos 16 anos de carreira.

E é uma pena – como também o reconhece Homero Ferreira, diretor de produção do LP – que o disco tenha apenas 12 músicas.

Pois aqui entra a segunda grande qualidade do LP; ele é extremamente bem produzido, bem gravado, bem interpretado.

Os arranjos e os músicos que os executam estão perfeitos, adaptando-se com brilhantismo aos sambas alegres, às vezes debochados, e sempre envolvidos pelo sincopado característico de Geraldo Pereira. Estão belíssimos, por exemplo, a flauta de Franklin, o cavaquinho de Canhoto e o violão de sete cordas de Dino, enchendo de pausas a melodia de “Pode Ser?”, cantada com simplicidade e competência por Cristina Buarque de Hollanda. Ou o trombone de Nelsinho, que abre o disco em “Escurinha”, cantada com o dengo e a malícia da voz de João Nogueira. Ou o acordeom de Orlando Silveira em “Pisei Num Despacho”, cantada pelo veterano Jackson do Pandeiro.

Mas estes são apenas alguns exemplos esparsos. Todos os músicos dirigidos por Orlando Silveira dão, de sobra, demonstrações de talento, ao longo do LP que tem, ainda, as vozes de Elton Medeiros, Nelson Sargento, Grupo Tarsis, Marçal, Batista de Souza, Vânia Carvalho, Monarco, Roberto Silva – um time, como se vê, de primeira.

O único senão ficaria, talvez, com a interpretação, à la Jards Macalé, de Jards Macalé e seu violão em “Mais Cedo ou Mais Tarde” – uma interpretação teatral, pontuada pela respiração ofegante, pela voz que quase some dos alto- falantes, ao sublinhar, sempre com exagero e consciência do exagero, bem ao gosto de Macalé, a dramaticidade das palavras.

Mas nem chega a ser um senão. Geraldo Pereira era um inovador, que jamais rejeitaria experiências. Provavelmente até acharia Macalé engraçado.

Esta resenha foi publicada no Jornal da Tarde, em 28/03/1981.

 

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