Elis Regina está mudando outra vez. Está começando nova fase. É o que ela mesma diz sobre seu mais recente disco, Elis, lançado pela EMI-Odeon nas últimas semanas de 1980. O disco, diz ela, é “um grande divisor de águas”.
Pode ser. Mas os divisores de águas, os marcos, as obras de transição nem sempre são as melhores de um artista. E este Elis é certamente um disco menor, dentro da obra desta mulher de 35 anos e 21 de carreira que é, incontestavelmente, uma das duas maiores cantoras de música popular do País.
Como Gal Costa, nossa outra cantora maior, Elis Regina Carvalho da Costa já mudou muitas vezes. Ela começou, no final dos anos 50 e início dos 60, como uma espécie de Cely Campelo, cantando calipsos, rocks e twists. Foi uma fase, digamos, pré-histórica (a própria Elis fez questão de comemorar os dez anos de sua carreira em 1974, e não em 1971, dez anos depois do lançamento de seu primeiro LP Viva a Brotolândia, nem em 1969, dez anos depois de seu primeiro contrato com a Rádio Farroupilha de Porto Alegre).
Houve, depois, uma fase de transição, no início dos anos 60, em que Elis cantou bossa nova no Rio, especialmente na famosa boate Bottle’s, no Beco das Garrafas, o templo da bossa nova na época. E a história propriamente dita começaria em 1964, a partir dos espetáculos no Teatro Paramount, já em São Paulo, e em seguida com os festivais e o programa O Fino da Bossa. Foi quando ela virou nome nacional, cantando os sambas festivos da época, agitando loucamente os braços sublinhando com violência palavras como “liberdade”.
A partir de 1968, nova fase: a dona da voz belíssima, afinada, poderosa, passou a domar a voz, segurá-la, burilá-la. Foi a época da cantora que desenvolvia, básica e fundamentalmente, a técnica. Passou a chamar suas apresentações, seus espetáculos, não de shows – mas de recitais, ou concertos. O auge dessa fase foi um dos mais belos discos já gravados no País, Elis e Tom (1974).
De volta à política na pior fase da ditadura
Com o show Falso Brilhante, do final de 1975, a voz que havia conquistado a perfeição técnica permitiu que a emoção voltasse a se expressar. Elis Regina estava madura, completa, perfeita. E voltava, naqueles tempos de final da pior fase da ditadura, à política, com músicas como “Los Hermanos”, “Conversando no bar”, “Caxangá”, “Aos nossos filhos”, “Cartomante”, “Deus lhe pague”.
Houve muita gente que chamou esse período da carreira de Elis de pesado, duro, discursivo, maçante (embora todos tivessem de concordar que a cantora continuava brilhante, perfeita).
É desta Elis Regina que Elis Regina pretende afastar-se, a partir do último disco. Ela diz que quer ser “livre, leve e solta”. E a intenção se mostra clara, transparente, já a partir da escolha do repertório. Elis Regina quer sair das trevas, do sufoco; quer a luz, o sol. Exemplos: “Você pega o trem azul, /O sol na cabeça./O sol pega o trem azul./Você na cabeça./O sol na cabeça” (“O trem azul”, Lô Borges e Ronaldo Bastos). Ou “Nova esperança, bate coração,/Renascer cada dia/ Com a luz da manhã. / Despertar sem medo,/Enganar a dor…” (“Nova estação”, Luiz Guedes e Thomas Roth). Ou “O sol levantou mais cedo e cegou /O medo nos olhos de quem foi ver,/ Tanta Luz” (“O medo de amar é o medo de ser livre”, Beto Guedes e Fernando Brant). Ou ainda: “Mas não vou pedir desculpa / E nem vou levar a culpa / De ser povo e ser artista / Sem essa, moço, / Por favor, não crie clima, / Seu buraco é mais embaixo, / Nosso astral é mais em cima” (“Sai dessa”, Natham Marques e Ana Terra).
Elis Regina quer o astral mais em cima, sem dúvida – e isso é ótimo. O problema é que, de Elis Regina, acostumou-se a esperar a perfeição – seja cantando a emoção, seja cantando o sufoco, seja cantando o brilho do sol. E este Elis está longe dos melhores momentos da cantora.
Por exemplo: Elis Regina, mestre em recriar músicas já gravadas várias vezes, e torná-las novas e atraentes, desta vez deslizou. “O trem azul” – é impossível deixar de constatar – está muito melhor na gravação original, na voz de Lô Borges, no Clube da Esquina, de 1972. As regravações de “Vento de maio” e “O medo de amar é o medo de ser livre” não acrescentam nada – nem às obras, nem à cantora.
Os arranjos também não são o melhor de que é capaz César Camargo Mariano. Há uma insistência nos teclados elétricos que chega a ser monótona e cansativa. Parece até difícil acreditar que o músico que escreveu o belíssimo arranjo de “Canção da América”, em Saudade do Brasil, seja o mesmo diretor musical deste Elis. A própria cantora, que é absolutamente incapaz de fazer sair um som feio da garganta, falha na nova divisão rítmica que dá, por exemplo, a “O medo de amar…”
Há, é claro (afinal, trata-se de um disco de Elis Regina), momentos belíssimos. “Aprendendo a jogar”, de Guilherme Arantes, tem uma grande força: é dessas músicas que dificilmente saem da cabeça de quem ouviu. O coro que envolve a voz de Elis é marcante – e ela solta sua voz privilegiada para marcar bem o que está dizendo, aliás versos bem próprios para quem está atrás de um bom astral: “Vivendo e aprendendo a jogar, / Nem sempre ganhando, / Nem sempre perdendo, / Mas aprendendo a jogar”.
Há ainda “Rebento”, do sempre competente Gilberto Gil; e revelação dos paulistas Jean e Paulo Garfunkel, com uma música bem humorada, “Calcanhar de Aquiles”.
Pouco, para um disco de Elis Regina.
Um disco feito por obrigação contratual
Até se entende. Elis (um pouco como o disco Vida, de Chico Buarque) é meio um disco feito por obrigação. Quando, em 1979, Elis saiu da PolyGram (onde estava desde o longínquo 1964), assinou contrato com a WEA – e também um outro contrato com a EMI-Odeon. Pela WEA, em 1980, lançou Saudade do Brasil, um álbum duplo com o registro, em estúdio, do show do mesmo nome. E, no final do ano, durante um corrido período de um mês, gravou este Elis que, por contrato, devia à Odeon. Ao mesmo tempo em que César Camargo Mariano gravava um LP com o seu conjunto. Assim não há fôlego para a perfeição.
Agora a cantora não deve nada a ninguém. Está nos Estados Unidos – não por obrigação, e com todo o tempo que quiser – gravando com os jazzistas Wayne Shorter e Herbie Hancock. Será seu primeiro disco a ser lançado no mercado internacional.
E será, certamente, uma boa oportunidade para Elis cultivar sua atual vontade de ser leve, livre e solta. Mas com perfeição.
A historinha atrás do texto
Esta resenha do disco de Elis foi publicada no Jornal da Tarde em 10 de fevereiro de 1981. Pouco tempo depois, em junho, tive a extraordinária oportunidade entrevistar Nara Leão, que estava lançando o disco Romance Popular, um disco em tudo e por tudo livre, leve e solto – e Nara estava com um tumor no cérebro. Evidentemente que eu sabia que Nara e Elis se detestavam. A entrevista foi longa, à vontade, quase livre, leve e solta. E aí lá pelas tantas eu comentei com Nara algo do tipo: “Você fez exatamente o que a Elis disse que queria fazer, um disco livre, leve o solto”. Nara pensou um pouquinho, e perguntou: “Ela disse isso, é?” E eu dei força: “É, mais o seu é muito melhor”. Nara não pareceu ouvir muito a minha frase de entrevistador-fã, mas ficou em silêncio por algum tempo, pensando. Depois fez um belíssimo sorriso.
Onde será que eu estava com a cabeça ao afirmar, numa “crítica” de disco, em 1981, que as cantoras maiores do Brasil eram Elis e Gal? E Nara? E Bethânia?
Coisas de “crítico”. “Crítico” é babaca – mesmo quando fazendo free-lancer.
Em 1981 já era essa enormidade para fazer comentários! Agora, aos 60 é fabuloso!
Pena não termos mais a maravilhosa Elis,
Você não foi babaca,apenas foi transparente.Elis,e Gal no papel de vice.
Esse crítico nao sabe nada mesmo.Onde que romance popular é melhor que o Elis de 1980.E pelo jeito ainda nao sabe de nado.
O próprio lo borges falou que essa era a melhor versão. Ficou de boca aberta com as várias vezes que ela cantou no estúdio. Vá entender.