Quando, em 1974, Gilberto Gil gravou “Eu Só Quero um Xodó”, e a música fez um imenso sucesso no País inteiro (em apenas dois anos, teve 20 gravações diferentes), seus autores já eram veteranos. Afinal, os pernambucanos José Domingos de Moraes e Lucinete Ferreira, mais conhecidos como Dominguinhos e Anastácia, estão na luta há muito tempo – ele começou a tocar sanfona aos seis anos de idade, nos hotéis e feiras de Garanhuns; ela aos 13 anos já cantava em uma rádio do Recife.
Mas foi só a partir do baião “Eu Só Quero um Xodó” que os nomes de Dominguinhos e Anastácia passaram a ser conhecidos nacionalmente. Na verdade, mais o dele que o dela, porque o grande sucesso de 1974 agiu de forma diferente sobre a carreira de cada um. Anastácia teve algumas músicas suas gravadas por Gal Costa e Ângela Maria, mas continuou sendo conhecida basicamente no Nordeste e nos “consulados” nordestinos no Sul-Maravilha, os salões de forró. Seu último disco, A Fulô do Forró, acaba de ser lançado pela Chantecler, uma etiqueta mais “pobre” da Continental, destinada em geral às audiências mais populares, menos universitárias, menos classe média.
Na mesma época, foi lançado o 14º LP de Dominguinhos, Querubim, gravado com mais recursos nos estúdios da multinacional RCA. Pois, de 1974 para cá, a carreira do sanfoneiro Dominguinhos deixou de interessar apenas ao público nordestino, e passou a ser acompanhada também pela classe média urbana que ouve músicos como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia – gente com quem, aliás Dominguinhos já tocou.
As muitas semelhanças e as pequenas diferenças entre os antigos parceiros pernambucanos – deixadas claras com o lançamento simultâneo de seus LPs – podem dar margem a interessantes constatações sobre algumas atitudes diante da música brasileira de hoje.
Justamente porque Dominguinhos passou a ser escutado por um novo público, a partir de sua ligação com músicos mais, digamos, de elite, ele sofreu alguns ataques. Afirmou-se, por exemplo, que, para poder ser ouvido pela classe média urbana, Dominguinhos abandonou algumas das características mais marcantes de sua música fortemente nordestina; ele estaria, segundo esses críticos, traindo suas origens e suas raízes.
(O mesmo tipo de ataque, aliás, tem sido endereçado ao ídolo e mentor de Dominguinhos, Luiz Gonzaga. O velho Lua, o Gonzagão, estaria menos puramente nordestino, agora que sua presença é capaz de arrebatar platéias no Maracanãzinho, no Riocentro, no Anhembi).
Besteira. Querubim mostra que Dominguinhos, aos 40 anos de idade, 20 dos quais passados no Rio de Janeiro, agora radicado em São Paulo, morando numa simpática casa do Paraíso, é extremamente nordestino, com sua sanfona, suas toadas, seus xotes e seus baiões que falam de forró, terra seca, gado magro, povo sofrido. Tão nordestino quanto Pedro Sertanejo, um dos homens que o ajudou em sua carreira. Tão nordestino quanto Oswaldinho, o filho de Pedro Sertanejo, que é capaz de fazer um som nordestino mesmo que mesclado ao jazz, mesmo que tocando Beethoven. Tão nordestino quanto Anastácia – que, talvez por não ter cantado com Gil, Caetano & Cia., não tem conseguido atingir outras audiências.
E, mesmo que o som de Dominguinhos não fosse nordestino, qual seria o problema? O importante é que ele é bonito.
Querubim tem dois destaques. “Diz, Amiga” é uma toada lenta, uma terna conversa entre sanfoneiro e sua sanfona a respeito de sua vida e da vida de seu povo. Nela, Dominguinhos canta acompanhado por sua parceira na música e na vida – Guadalupe, 23 anos de idade, o primeiro disco lançado pela RCA em novembro do ano passado, segunda mulher do compositor e instrumentista.
O segundo destaque é “Esse Velho Sol”, belo baião de Dominguinhos para o qual Renato Teixeira escreveu uma letra sutil e bonita, refletindo as próprias experiências de Dominguinhos, que deixou o Nordeste, morou no Rio e optou por São Paulo, onde “é mais seguro pra se amar”. A voz macia de Dominguinhos dá força a belas imagens como esta: “Este velho sol gosta de brincar, lambe em Ipanema e vai morder no Ceará”.
Há ainda a malícia sempre presente nos xotes em “O Galo Já Miudou” e “Cintura de Abelha”. E mais cinco músicas instrumentais, em que Dominguinhos se mostra senhor do instrumento que conhece desde criança e que, humilde, continua até hoje a aprender a tocar. Entre estas, há “17 Légua e Meia”, do repertório do mestre Luiz Gonzaga, em que a sanfona desafia a guitarra do outro virtuoso nordestino, Heraldo do Monte.
É, certamente, um disco que tocará mais nas rádios das grandes cidades que o A Fulô do Forró, de Anastácia. Questão de imagem, de marketing das gravadoras, do comodismo dos programadores. Porque o som de Dominguinhos é bem próximo do de sua antiga parceira. É verdade que, em Querubim, há uma maior predominância do acompanhamento de baixo, bateria e guitarras, enquanto em A Fulô do Forró destacam-se mais o triângulo e a zabumba. É verdade, também, que a voz de Anastácia é menos macia, menos suave, mais rasgada, talvez mais estridente mesmo, aos nossos ouvidos de classe média urbana, que a de Dominguinhos. Mas em seu disco está o acordeão de Oswaldinho, rival à altura da sanfona de Dominguinhos. Está lá a mesma força rítmica dos baiões e dos xotes. E estão lá os mesmos temas: o amor, a malícia, a safadeza gostosa e picante – e as dores do Nordeste e do nordestino.
A velha questão da música presa às origens e raízes está presente explicitamente em “Vamos Dançar o Xote”, de Anastácia e Oscar Barbosa. A música defende as surradas teses de um nacionalismo musical purista – mas com uma graça tão simpática e ingênua que a música torna-se irresistível (“Não sei o que se passa com o povo brasileiro que fica todo o tempo bajulando o estrangeiro. Confesso já não agüento, espero que ninguém negue, meu xote nordestino agora virou reggae… Eu juro, o xote é nosso do pé até o cangote”).
Mas não é só isso que há em A Fulô do Forró. Há bons momentos como “Pássaro de Aço”, “Corvo Preto” e “Amargo que Nem Filó”, que, mais nordestinas, são absolutamente universais, com suas imagens meio ingênuas e singelas de criadores que não freqüentaram faculdade, mas nem por isso menos fortes e poderosas. Pena que muitos ouvidos precisem do aval específico de gente mais próxima de seu universo, como Caetano e Gil, para ser capaz de aprová-las.
Este texto foi publicado no Jornal da Tarde em 9/6/1981
Um comentário para “Os diferentes destinos de Dominguinhos e Anastácia”