O morto orgulhoso

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Matou-o uma mesinha-de-cabeceira. A trivialidade de um facto destes põe-nos um esgar cínico nos lábios. Deixamos de querer a mesinha-de-cabeceira na nossa vida.

Imagino que perguntem se o fulano que é assassinado por uma solitária mesinha-de-cabeceira teria alguém que o amasse na vida. Tinha. Billy Wilder ia almoçar com ele muitas vezes. A Santa Monica, onde morava essa mesinha-de-cabeceira ou, metendo-se num monótono espada americano, a Palm Springs.

Não conheço ninguém que gostasse tanto dele como Wilder. E sei que minto, laborando numa piedosa omissão. A delicadíssima Audrey Hepburn gostava muito mais dele. O amor dela sobreviveu a várias mesinhas-de-cabeceira. Só feneceu quando ele lhe disse que, tendo feito uma vasectomia, lhe podia fazer o que já apaixonadamente lhe estava a fazer, mas não lhe podia fazer filhos.

Sim, o cadáver que aqui vos trago é o do solitário e alcoólico William Holden. Matou-o uma mesinha-de-cabeceira com a cumplicidade de duas garrafas de vodka, num apartamento de Santa Monica. “Que fim foleiro para um gajo fenomenal”, disse Billy Wilder, deus ex machina dessa morte.

O caminho para a morte ficou desenhado, em 1950, no verdadeiro primeiro filme de Holden, Sunset Boulevard da autoria de Wilder. Nos dez anos anteriores, Holden fora um menino bem, rapazinho dourado sob preguiçoso contrato com a Paramount, gigantesco estúdio de Hollywood. Em Sunset Boulevard o filme começa e já William Holden está morto. O cadáver dele flutua na piscina e conta-nos, em off, toda a humilde história que é cada tragédia humana.

Quantos actores arriscariam um papel destes? Talvez António Costa, que tem no Bloco a sua mesinha-de-cabeceira e no PCP a velhinha garrafa de vodka. Mas a reclusa coragem de António Costa era estranha a Montgomery Clift, que recusou o papel e o mortal convite de Wilder. De recusa em recusa, Wilder bateu à porta de Holden. Holden sabia ler um guião e, tiro e queda, disse logo que sim.

Nunca mais deixou de ser um morto. Quando, aos 63 anos, empurrado pela garrafa de vodka, tropeçou no tapete do quarto e se espetou de cabeça contra a esquina da mesinha-de-cabeceira, foi o morto que Wilder lhe ensinara a ser que o perdeu. O telefone ao lado, preferiu ensopar em sangue vinte kleenexes, para não incomodar os vivos. William Holden, o morto orgulhoso.

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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

Sunset Boulevard no Brasil é Crepúsculo dos Deuses.

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