Com 105 condenações que somam mais de 1.140 anos de prisão, a Lava-Jato faz o Brasil acreditar que é possível trancafiar endinheirados e poderosos. Nas celas de Curitiba estão ex-ministros e tesoureiros do PT, empreiteiros, doleiros. Mas não consegue pegar políticos com mandato, detentores de foro especial por prerrogativa de função, vulgo foro privilegiado. Uma excrecência que beneficia mais de 22 mil pessoas – do presidente da República e seus ministros a governadores e prefeitos, além de senadores e deputados, magistrados – algo em torno de 16 mil. E até vereadores e delegados, em alguns tipos de crimes.
O foro especial não é uma invenção tupiniquim. Existe em vários lugares do mundo. Mas quase sempre limitado a um tipo de processo – normalmente correlato à função exercida pelo beneficiado, portanto administrativo. “O Brasil é um dos países que mais tem pessoas com prerrogativa de foro, só se compara à Venezuela e à Espanha, mas lá o foro é apenas para os crimes funcionais”, assegura o procurador da Lava-Jato Diogo Castor de Mattos.
Por aqui, o privilégio vale para tudo: do estelionato aos maus tratos, da roubalheira ao homicídio. A única exceção expressa no parágrafo 1º do artigo 53 da Constituição de 1988 é ser pego com a boca na botija, em “flagrante de crime inafiançável”.
Sendo assim, ainda que o Supremo Tribunal Federal tivesse disposição e dias de 80 horas, seria preciso muito fôlego dos 11 ministros para dar conta de um contingente desse tamanho. Só pela agenda sufocada dos ministros, o réu ou investigado ganha tempo – muito tempo – quando o processo fica no âmbito do STF, desejo máximo da unanimidade dos advogados de defesa.
No caso da Lava-Jato, a quantidade de procedimentos do Supremo impressiona. De acordo com o hotsite criado pelo Ministério Público Federal para informar sobre a operação, em pouco mais de dois anos o STF já autorizou 139 investigações, instaurou 59 inquéritos, com 38 investigados.
Mas o fato é que, à exceção do ex-senador Delcídio do Amaral – preso em flagrante não por roubar, mas por interferir nas investigações –, nem julgamento nem punição chegaram aos políticos que detêm mandato.
Em 2007, ano em que o STF acatou a denúncia dos 40 envolvidos no Mensalão, o ministro Celso de Mello fez defesa contundente do fim do foro de elite. “Minha proposta é um pouco radical: a supressão pura e simples de todas as hipóteses constitucionais de prerrogativa de foro em matéria criminal”, disse ao jornal Folha de S. Paulo. Como a suspensão do privilégio depende de aprovação congressual, sugeriu que a Corte avançasse, pelo menos, em limitar a abrangência dos crimes.
Nada aconteceu. Nem no STF, nem no Congresso, onde dezenas de propostas sobre o tema tramitam, algumas delas há mais de uma década. Duas semanas atrás, no bojo da cobrança do MPF em torno da emenda popular sobre as 10 medidas contra a corrupção, uma delas, a PEC 470, de 2005, ameaçou sair da gaveta. Ficou só na ameaça.
Disse a ministra Cármen Lúcia: “No Brasil, a gente engole o elefante, mas engasga com a formiga, consegue fazer o impeachment (da presidente da República), mas não consegue tirar o vereador da cidade pequena que todo mundo sabe que roubou ou fez coisa errada”.
Isso é gravíssimo. Mas o problema é maior e ainda pior do que o expresso pela figura de linguagem da magistrada que assume a presidência do STF em setembro.
O Brasil não consegue desratizar nem dedetizar. Ao contrário, mantem privilégios que perpetuam a multiplicação de roedores e insetos, predadores que não só o engasgam, mas o intoxicam. Perto disso, engolir elefantes é fácil.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 26/6/2016.
Para que as pessoas desenvolvam esta percepção é necessário que as informações publicadas tenham a perspectiva de que é uma crise de transformação, que implica a implosão de um sistema corrompido e o decorrente período de instabilidade antes da consolidação de um novo modelo partidário.
É um desafio especialmente relevante para a imprensa porque pode ajudar a restabelecer a confiança do público nos jornais, revistas e telejornais, condição essencial para estes veículos sobrevivam aos traumas do ingresso na era digital. O que estamos observando, no entanto, é a grande mídia nacional procurando ficar em cima do muro.
A Operação Lava-Jato, que tem cerca de 500 investigados, entre empresários, políticos, e empreiteiras, traz a oportunidade à imprensa brasileira de demonstrar que, independentemente de cor, legenda ou instância, será manchete todo aquele considerado como alguém que lesou os cofres públicos e/ou a pátria.
Com isso o mundo se torna cor de rosa? O fim será que todos serão felizes para sempre? Não. Mas hoje a imprensa tem a chance de demonstrar o que sabiamente ensina o dito popular – “pau que bate em Chico, bate em Francisco”. É algo que vale a pena observar.
A oportunidade à imprensa brasileira de demonstrar que, independentemente de cor, legenda ou instância, será manchete todo aquele considerado como alguém que lesou os cofres públicos e/ou a pátria.
Com isso o mundo se torna cor de rosa? O fim será que todos serão felizes para sempre?
Não!
Mas hoje a imprensa tem a chance de demonstrar o que sabiamente ensina o dito popular – “pau que bate em Chico, bate em Francisco”.
É algo que vale a pena observar.
O foro privilegiado não foi privilégio da presidenta, é extensivo ao seu vice.
A regra do jogo deve ser mudada. Foro igual para todos,respeito a isonomia e respeito à Constituição.
“Art. 5º – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes : LIV – “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”
O principal limite ao exercício do poder é formado pelos direitos e garantias fundamentais, verdadeiros trunfos contra a opressão (mesmo que essa opressão parta de maiorias de ocasião, da chamada “opinião pública”). Sempre que um direito ou garantia fundamental é violado (ou, como se diz a partir da ideologia neoliberal, “flexibilizado”) afasta-se do marco do Estado Democrático de Direito. Nada, ao menos nas democracias, legitima a “flexibilização” de uma garantia constitucional, como, por exemplo, a presunção de inocência (tão atacada em tempos de populismo penal, no qual a ausência de reflexão – o “vazio do pensamento” a que se referia H. Arendt – marca a produção de atos legislativos e judiciais, nos quais tanto a doutrina adequada à Constituição da República quanto os dados produzidos em pesquisas sérias na área penal são desconsiderados em nome da “opinião pública”).
Na Alemanha nazista, o führer do caso penal (o “guia” do processo penal, sempre, um inquisidor) podia afastar qualquer direito ou garantia fundamental ao argumento de que essa era a “vontade do povo”, de que era necessário na “guerra contra a impunidade” ou na “luta do povo contra a corrupção” (mesmo que para isso fosse necessário corromper o sistema de direitos e garantias) ou, ainda, através de qualquer outro argumento capaz de seduzir a população e agradar aos detentores do poder político e/ou econômico (vale lembrar aqui da ideia de “malignidade do bem”: a busca do “bem” sempre serviu à prática do mal, inclusive o mal radical. O mal nunca é apresentado como “algo mal”. Basta pensar, por exemplo, nas prisões brasileiras que violam tanto a legislação interna quanto os tratados e convenções internacionais ou na “busca da verdade” que, ao longo da história foi o argumento a justificar a tortura, delações ilegítimas e tantas outras violações).