A mais bela de todas as frases que John Lennon falou e/ou escreveu em sua curtíssima mas muito bem vivida vida não está em nenhuma música dos Beatles, nem em uma de suas milhões de entrevistas, nem no disco que tem “Imagine”, o hino à solidariedade de todos os seres humanos que lançou um ano após o fim da banda mais adorada da história.
Está em “Beautiful Boy”, uma das faixas de seu último disco, Double Fantasy, gravado em 1980, o disco meio a meio de John e Yoko que seu assassino carregava e para o qual pediu autógrafo, antes de dar os tiros que o mataram.
(“Um simples canalha mata um rei em menos de um segundo”, como bem sintetizou Ronaldo Bastos na letra para a melodia de Beto Guedes “Canção do Novo Mundo”.)
“Beautiful Boy” é uma lullaby, uma canção de ninar que John escreveu para seu filho Sean, que, em 1980, o ano em que Double Fantasy foi lançado, e em que John foi assassinado por um canalha, estava com cinco anos de idade.
John diz para o filhinho, na canção de melodia maravilhosa, que ele precisa ter cuidado antes de atravessar a rua.
“Antes de atravessar a rua, pegue minha mão”, ele diz.
E aí, logo em seguida, vem a frase mais bela que John fucking Lennon jamais escreveu na vida:
“Life is what happens to you while you’re busy making other plans.”
A vida é o que acontece com você enquanto você está ocupado fazendo outros planos.
Digo John fucking Lennon porque é assim que a ele se referem em Danny Collins, no Brasil Não Olhe Para Trás, um filme construído a partir de uma carta que John Lennon de fato escreveu, em 1971, para um músico iniciante, oferecendo ajuda a ele, colocando-se à disposição dele.
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Meu Deus do céu e também da terra! Me ocorreu de repente que John fucking Lennon morreu com a exata idade que minha filha acaba de comemorar! Dois anos menos do que tinha meu irmão Arnaldo quando morreu!
Fernanda nasceu em 1975, o ano em que John Lennon lançou Rock’n’roll, um disco sem composições suas, de covers de canções dos outros. A relação com Yoko não ia bem, e a partir daquele ano ele começou o que chamaria de The Lost Weekend, em referência ao filme do mesmo nome, no Brasil Farrapo Humano, um maravilhoso drama de Billy Wilder sobre alcoolismo. De 1975 até 1979, John esteve longe de Yoko, e, segundo ele mesmo, afundado em drogas e álcool. Voltou à tona quando reatou com a mulher, voltou a conviver com o filho, e compôs uma penca de canções maravilhosas sobre recomeçar a vida, reencontrar o centro, a luz.
Que coisa absurda, inominável, sem sentido John Lennon ter nos deixado tão absolutamente jovem! E exatamente no momento em que se reencontrava, depois de um longo período de piração/perdição.
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E, no entanto, morrer jovem é rock.
Neil Young resumiria isso num belíssimo rock, como diriam alguns roqueiros, oitentista: “My my, hey hey, / Rock and roll is here to stay / It’s better to burn out / Than to fade away / My my, hey hey”.
É melhor queimar do que ir desvanecendo.
Quando eu estava na faixa dos 25, 28 anos, me encantei com um livro chamado Rock Dreams, de Guy Peellaert e Nik Cohn. São desenhos, pinturas, obras de arte – criados especialmente para o livro – retratando os grandes ídolos do rock e do pop em situações imaginárias. O traço é hiper-realista, mas as situações são fantásticas, quase surreais, fruto da imaginação dos artistas – retratam muito mais os símbolos do que a verdade dos fatos. Assim, por exemplo, a página dedicada a Donovan, o trovador do flower-power que cantava Guinevere da corte do Rei Artur, aparece sentado em uma montanha de lixo, com a legenda: The Fool on the Hill. Num desenho que ocupa uma página dupla, estão conversnado na Washington Square do Village Phil Ochs, Bob Dylan, Judy Collins, Joan Baez e Allen Ginsberg.
A capa é uma maravilha. É um único quadro, ocupando a capa e a contracapa. Mostra quatro sujeitos sentados conversando no balcão de uma típica lanchonete americana dos anos 50. Da esquerda para a direita, Elvis Presley, John fucking Lennon, Bob Dylan e Mick Jagger.
Rock Dreams abre com uma grande brincadeira: uma página de jornal traz a manchete de duplo sentido: “Frankie Goes to Hollywood”. (Para quem não se lembra, este era o nome de uma banda formada em Liverpool nos anos 80, que fazia um som, segundo o irrefutável AllMusic, gay disco pop.) Em vez de foto, a página de jornal traz um desenho dos artistas Peellaert e Cohn mostrando um super jovem Frank Sinatra indo para Hollywood.
Na última página do livro – que percorre tudo o que houve de pop entre 1945 e aí por volta de 1973 –, há uma foto de Sinatra velho, copo de uísque na mão, com a legenda: “Hope I die before I get old”. Espero morrer antes de ficar velho.
Morrer jovem é rock: Hope I die before I get old. Hey, hey, my, my: It’s better to burn out than to fade away.
Lennon teve o privilégio (para os padrões rock) de morrer jovem, belo, no auge do auge do auge. Raul também. Até mesmo Tim Maia, que não é rock mas é muito soul, e soul é perto.
Lennon e Raul fazem a cabeça de gerações após gerações. Eles pegaram fogo, não foram sumindo nas cinzas.
Elvis morreu balofo, depois de cantar para novo-ricos entediados nos cassinos de Las Vegas. Em The Commitments, o pai do protagonista, fanático por Elvis, proclama: “Elvis é Deus”. E o filho responde: “Não imagino Deus com um barrigão cantando ‘My Way’ no Caesar’s Palace”.
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Mitos do rock à parte, better to burn out than to fade away à parte, é um absoluto absurdo John fucking Lennon ter morrido pouco depois de completar ridículos, parcos, pouquíssimos 40 anos de vida.
O que Buddy Holly, que morreu aos 22, estaria compondo, se tivesse chegado aos 30?
Bob Dylan está aí, compondo pérolas luminosas perto dos 60, 70, e também depois. Algumas de suas mais perfeitas canções estão em Time Out of Mind, seu disco de 1997, quando tinha 56. Leonard Cohen, este já chegou aos 80, e está aí criando belezas como “Almost like the blues”, em seu disco de 2014, o ano em que fez oitentinha. Paul McCartney e Bruce Springsteen esbanjam energia em turnês mundão véio afora.
E Neil Young, hey, hey, my, my, quatro anos mais jovem que Dylan, três que McCartney, também está firme e forte, graças ao bom Deus. Outro dia mesmo, num show que está no YouTube, danou a falar sobre Phil Ochs – que escolheu ele mesmo, aos 36 anos, que era melhor se queimar do que ficar se dissolvendo em cinzas –, e ficou muito puto quando um imbecil da platéia disse que era para ele parar de falar e cantar.
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Um dia, num raro momento de inspiração, escrevi que a obra-prima de John Lennon foi sua própria vida. A forma com que cresceu, evoluiu. Com que passou dos sinos e berros desesperados da canção “Mother”, de 1970, para os sininhos doces, suaves, alegres, de “(Just like) Starting Over”, de 1980.
Gostaria imensamente de saber o que John Lennon estaria fazendo hoje, aos 75 anos de idade.
Gostaria de saber se ainda teria a força criativa que tem seu ex-maior amigo, seu ex-maior inimigo, que, velhinho, fala – em melodias riquíssimas, belíssimas – sobre o caos e a criação no quintal de casa.
Provavelmente teria, sim.
Talvez ficasse de saco cheio por ter que cantar “Imagine” cada vez que subisse a um palco. “Imagine” foi o hino de uma geração, continuou hino para muita gente das gerações seguintes, é uma maravilha de hino, é uma beleza de utopia, um mundo sem religiões, sem guerras, sem competição, de solidariedade, a brotherhood of man – mas os grandes criadores acabam se cansando de seus próprios hinos, como Dylan de “Blowin’ in the Wind”, Paul Simon de “Sounds of Silence”, Zeca Afonso de “Grândola, Vila Morena”.
Mas estaria muito provavelmente compondo, e muito bem.
Só que nem mesmo ele conseguiria, já velhinho e ainda mais sábio, escrever versos mais belos do que os que escreveu aos 40 para o filhinho – life is what happens to you while you’re busy making other plans.
Obrigado, Santo John de Liverpool, John Marx Engels Ono Lennon, John fucking Lennon.
Agosto de4 2015
Beautiful Boy
(John Lennon)
Close your eyes
Have no fear
The monster’s gone
He’s on the run and your daddy’s here
Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy
Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boyBefore you go to sleep
Say a little prayer
Every day in every way
It’s getting better and betterBeautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy
Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boyOut on the ocean sailing away
I can hardly wait
To see you come of age
But I guess we’ll both just have to be patient
‘Cause it’s a long way to go
A hard row to hoe
Yes it’s a long way to go
But in the meantimeBefore you cross the street
Take my hand
Life is what happens to you
While you’re busy making other plansBeautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy
Beautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boyBefore you go to sleep
Say a little prayer
Every day in every way
It’s getting better and betterBeautiful, beautiful, beautiful
Beautiful boy
Darling, darling, darling
Darling Sean
Lennon, um velho e doce anarquista,IMAGINE.
Um verdadeiro achado, Sergio.
Valeu, Sérgio.
Vivina