A locadora fecha, e nem dobram os sinos

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É, o cerco está se fechando – e a uma velocidade absurda, brutal.

Ainda nesta semana, na segunda-feira, 6 de abril, Vera Vaia me deu uma gozeira quando contei que acabara de encomendar a caixa com os DVDs da segunda temporada de House of Cards. Estávamos na fila para pegar o autógrafo de Carlos Marchi no seu livro sobre Carlos Castello Branco, Todo Aquele Imenso Mar de Liberdade, na Livraria Cultura. Comentamos sobre o House of Cards, sobre o personagem, Frank Underwood. Sandro e Vera estavam terminando de ver a primeira temporada, nós também só vimos a primeira. Então eu desci um andar para comprar a segunda, mas não tinha na loja naquele momento; encomendei, para entrega no dia seguinte.

E então, quando subi de volta para a fila, comentei, todo contente, que tinha encomendado. Vera perguntou quanto custou, respondi: R$ 79,00. (Foi um erro meu: dois dias depois, quando fomos buscar a caixa de DVDs, vi que havia um desconto e o preço caía para R$ 59,00.)

Vera riu de mim e disse algo do tipo: “Por R$ 15,00 por mês na Netflix você vê a temporada inteira e quantos filmes mais você quiser.”

Tentei argumentar que gosto do DVD, do suporte físico. De ver o trabalho de arte na elaboração da capa. De botar o DVD para tocar no player – mas aí falei a frase enfiar o troço lá, e esse tipo de frase não se deve falar com ninguém porque vem gozeira, ainda mais com Vera Vaia, uma das línguas mais rápidas e mais ferinas do Oeste e também do Leste.

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Fomos hoje à nossa locadora, a Top Cine, junto da Alfonso Bovero.

IMG_0668É uma boa locadora. Muito boa mesmo. Claro, não é uma 2001, não tem aquelas super lojas imensas como a 2001, que é, ainda é, uma rede  grande, poderosa. A Top Cine é uma locadora de bairro, de uma loja só, não é rede. É, deve ser, de um único dono. Mas ocupa uma loja ampla, tem acervo vasto, variado, com muito cinema autoral – larga prateleira com filmes pela ordem alfabética dos grandes cineastas, de Allen, Woody, a Wenders, Wim –, muito cinema europeu, bastante coisa do asiático, do latino-americano e do brasileiro.

Acervo vasto, de qualidade, tudo muitíssimo bem organizado.

Migramos para a Top Cine alguns meses atrás, em dezembro de 2013, justamente quando a rede 2001 fechou sua extraordinária, maravilhosa loja na Avenida Sumaré.

Fui cliente da 2001 durante cerca de um quarto de século. Comecei a pegar filmes – em fita, em VHS – nos anos 80, na loja que eles tinham, e acho que ainda têm, na Avenida Paulista, num prédio chamado Quinta Avenida, entre Brigadeiro Luiz Antônio e Joaquim Eugênio de Lima. Da loja na Avenida Sumaré, fomos clientes desde que ela abriu até ela fechar, no final de 2013 – segundo os funcionários, não apenas por causa da crise do mercado de locação de DVDs e Blu-rays, mas também, e mais especificamente, por causa do aluguel absurdamente alto cobrado pelo dono do imóvel.

(Malditos proprietários da loja, que morram com a boca cheia de formiga. Até hoje, passados 15 meses do fim da 2001, a loja da Avenida Sumaré ainda não foi alugada por ninguém. Está lá, abandonada, às traças. Que morram com a boca cheia de formiga.)

A 2001 era uma mão na roda por todos os motivos. Em primeiro lugar, é claro, por causa do acervo imenso e da diversidade de títulos, com absolutamente tudo dos grandes, Bergman, Antonioni, Truffaut, Kurosawa. Mas também por causa da localização. Como a loja ficava a cerca de 1 km da minha casa, era gostoso caminhar até lá e depois de volta, com passagem pela maravilhosa padaria que fica no meio do caminho – um bom exercício físico feito com a finalidade nobre de pegar alimento para o espírito e para o estômago, algo muito melhor do que andar como um hamster numa esteira.

Assim que a 2001 fechou, passamos a frequenter a Top Cine. Não fomos os únicos: as meninas do atendimento nos disseram que muita gente que havia ficado órfã da 2001 estava indo para lá.

Meu bairro foi construído em cima de montanhas. A 2001 ficava no fundo do vale, mas, com jeitinho, dava para evitar subidas íngrimes demais na volta para casa – situada, digamos assim, no meio de um dos morros. Já a Top Cine, bem ao contrário da outra locadora, fica no alto, no cume do morro. Mas logo me adaptei à questão geográfica: basta pegar o Apiacás ali pertinho, no seu ponto final, que ele sobe o morro enquanto vejo o correio no celular. Aí vou à Top Cine, perambulo entre as prateleiras, fuço, fuço de novo, pego nos DVDs, olho as contracapas – o prazer de pegar no suporte físico, o troço que a gente enfia no buraco. Depois de escolhidos os filmes, passeio pela quadra absolutamente plana da Alfonso Bovero que tem a prainha (cinco, seis ou sete bares um junto do outro, todos com mesinhas na calçada, e gente tomando cerveja a qualquer hora, a qualquer hora, a qualquer hora do dia ou da noite). E do topo da montanha até minha casa é só descida e pra baixo todo santo ajuda.

Me alonguei excessivamente, fugi do assunto central feito o diabo da cruz, feito vampiro do alho e da cruz, feito petista da honradez e da verdade dos fatos. Em parte porque sou assim mesmo, escrevo, escrevo, escrevo. Em parte também, acho, porque estava tentando adiar ao máximo o que vem a seguir.

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IMG_0674Quando Mary parou o carro hoje diante da Top Cine, tentei me recusar a compreender o que significava aquela frase na faixa de pano esticada diante da loja. Mas o que estava escrito era absolutamente claro: “PASSO O PONTO”. Não “Passo o ponto”, mas “PASSO O PONTO”, assim, em caixa alta, que é para assustar este pobre apaixonado por suportes físicos.

Todo o acervo da Top Cine está à venda. Todo o acervo. Tudo, tudo, tudo, tudo.

Não conheci os donos, o dono da ótima locadora, ao longo destes 15 meses em que fui frequentador. Houve uma troca radical de pessoal de atendimento – as meninas simpaticíssimas que estavam lá em dezembro de 2013, quando nos inscrevemos, sumiram há uns seis meses, mais ou menos, e foram substituídas por rapazes igualmente simpáticos, solícitos. Creio que houve uma mudança de dono, nesse meio tempo, mas não dá para afirmar. Sou um reporter ruim, e não consegui maiores informações dos rapazes do atendimento que estão lá nos últimos meses.

Pode ou não ter havido transferência de propriedade. O fato é que os donos tinham bom gosto – isso fica evidente ao se observer a variedade de títulos e a importância dada aos grandes realizadores e aos cinemas europeu, asiático, latino-americano e especificiamente o brasileiro.

Como têm bom gosto, não estão vendendo os DVDs e os Blu-rays na bacia das almas, como a Petrobrás nocauteada por 12 anos de incompetência petista parece estar vendendo muitos de seus ativos. Os filmes mais antigos, de catálogo, esses estão saindo baratíssimos, por uns R$ 8,00. Os mais recentes estão custando R$ 25,00 e os grandes lançamentos bem recentes, caros R$ 35,00.

Saí de lá carregando cinco DVDs e um peso grande no coração.

Sou, a partir de hoje, um sem-locadora. E tenho absoluta certeza de que não conseguiria reunir no vão do Masp mais que uns dez outros companheiros sem-locadoras para sair em passeata protestando contra o inexorável fim das lojas de aluguel e/ou venda de suportes físicos.

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Essa última frase até que me saiu com alguma graça – muito embora não seja minha intenção, de forma alguma, fazer graça com assunto sério. Mas até que seria um bom fecho de texto – sempre achei que o fecho de um texto tem tanta importância quanto a abertura, o lead.

Mas ainda quero acrescentar coisa a este texto já imenso demais.

Nas duas últimas semanas, foram abertos, aqui no meu bairro, dois sebos.

Um deles fica exatamente na Alfonso Bovero, no mesmo passeio da Top Cine, a uns 300 metros da locadora. Passei por lá umas duas semanas atrás, voltando da Top Cine, e entrei para ver. Estavam lá uns cinco ou seis rapagões aí entre 30 e 40 anos, ainda trabalhando na instalação do lugar. Haverá um bar, me contaram, enquanto eu olhava os LPs à venda. Me explicaram a divisão: ali heavy metal, ali bandas de garagem, ali Beatles Stones, ali punk, ali música brasileira. Desejei boa sorte aos rapazes, mas, com meus botões, confidenciei que vai ser difícil o negócio dar algum lucro – pra dividir por toda aquela quantidade de gente, então… Difícil, muito, muito difícil.

Dias antes de eu descobrir esse sebo de discos que estava sendo aberto na Alfonso Bovero, tínhamos ido ver Viviane Kulcinski e suas criações em um bar da Rua Imaculada Conceição, na Santa Cecília. O bar pertence a uma moça que conhece minha filha – e uma de suas especialidades, além do pão de queijo feito na hora, e muitos outros salgadinhos, e boas cervejas, é a estante de velhos LPs usados, cuidadosamente embalados por plásticos de boa qualidade, que nem os que o Ademir da Pop’s Discos da Teodoro Sampaio sempre usou nos LPs que vendia, e eu sempre usei nos LPs que comprei ao longo das décadas.

Esta semana foi aberto um novo sebo aqui nas Perdizes. Foi Mary que viu – eu ainda não tive o prazer. Fica a uma quadra e meia da minha casa, num trecho especialmente residencial e nada comercial da Caiubi.

***

Então é assim: o negócio de vender e/ou alugar suportes físicos para música e cinema está praticamente desaparecendo. Lojas de discos e locadoras de filmes fecham as portas às dezenas, às centenas, às milhares.

Tá tudo na nuvem. Neguinho não precisa sair de casa: ou bem baixa na internet – pagando direitinho, legalmente, ou não –, ou bem vê via TV a cabo, Net, Sky, Netflix, o escambau.

O suporte físico acabou, viva a comodidade, viva a praticidade de se comprar (ou piratear) tudo sem sair de casa.

Na contramão de tudo isso, cada vez mais abrem-se lojas que vendem suportes físicos usados.

Ou não será na contramão coisa alguma? Não será um fenômeno paralelo – gente que juntou suporte físico quer se desfazer daquelas velharias imprestáveis e abre lojas achando que vai ganhar algum, mas a verdade é que ninguém quer comprar essas coisas velhas, mesmo que embaladas em plásticos de excelente qualidade?

Hein? Hein?

São fenômenos antípodas – ou, muito ao contrário, paralelos?

Sei lá. Não tenho a menor idéia.

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E aí, como não tenho a menor idéia, acrescento um fato, que me foi contado ontem pela Mary. Mary está indo a Amsterdã em junho, basicamente porque tem asinhas nos pés e adora viajar, e tem vontade de conhecer coisas da Holanda e da vizinha Bélgica, que ainda não conhece. Arranjou como desculpa que Mark Knopfler tem um show em Amsterdã no começo de junho, e então vai.

Eu não vou, é claro. Da mesma maneira que Mary foi dotada de asinhas nos pés, fui dotado de uma bola de ferro atada ao tornozelo – ball and chains, como nas canções folk, e também nas country.

Então Mary ontem, andando pelo site oficial do Mark Knopfler, viu que o bicho está lançando disco novo. Chama-se Tracker, e, muito diferentemente do que aconteceu com Abbey Road, Highway 61 Revisited, Bridge Over Troubled Water, e até com Sailing to Philadelphia, do próprio Mark Knopfler – discos de antigamente –, o álbum novo, neste admirável mundo novo, sai em vários formatos. O CD normal sai por US$ 13,45. O CD De Luxe, com creio que quatro faixas bonus, sai mais caro, evidentemente, por US$ 16,44.

Até aí, tudo bem, tudo muito dentro da lógica.

É, mas a versão em LP, em LP duplo, custa US$ 26,92.

Por que raios o LP custa mais caro que o CD, se ambos os formatos – ambos essa coisa antiga, que tem existência física, que a gente pode pegar, passar a mão, olhar, cheirar, e até quebrar, se quiser – estão condenados ao esquecimento total, ao oblivion, se já foi decretado que eles não existem mais, foram extintos, como dos dinossauros e as jurássicas pessoas que ainda têm aquelas coisas físicas entulhando suas casas?

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Ainda sem saber de nada do tema dessas discussões, Marina, 2 anos e quase uma quinzena, filha de pai tecno-maníaco, Apple-freak desde sempre, porém cuidadoso, como a senhora sua mulher, na aplicação de tanta tela na vida da pequena, é uma usuária de suportes físicos.

Ainda não tem idéia do que seja nuvem, HD instalado em caixinha da Net ou qualquer outra empresa. Netflix, então, para Marina é algo tão desconhecido quanto é para a tia-avó dela, que vegeta, sem ter praticamente qualquer contato com o mundo, a exatas duas quadras do lugar em que Marina cresce a cada minuto.

Hoje, como em todos os dias, teve a hora de ver 15 minutos de historinha e/ou música. Primeiro Marina quis o DVD de Peppa que tem a história da lama. Cláudia, com muito jeito, perguntou se ela não gostaria de mostrar para a vó a música da bailarina, uma de suas preferidas. E então vimos, vó, vô e Marina sentadinha entre nós dois, o DVD com canções infantis do Toquinho.

Marina pega os suportes físicos, os DVDs, e diz qual ela quer ouvir.

Ainda está ligada aos suportes físicos, que nem o vô.

Daqui a dois anos, vai rir de mim quando eu falar de CD ou DVD. ”Ô, vô, deixa disso, deixa que eu te mostro aqui, ó”, ela vai dizer, me mostrando no tablet ou no smartphone a música a que me referi, o filme sobre o qual falei.

10 de abril de 2015

14 Comentários para “A locadora fecha, e nem dobram os sinos”

  1. Assim como os LPs (e aqui há uma fortuna deles), os suportes físicos – todos eles – vão voltar a baila em breve. Acho que não em locadoras, mas na preciosidade de quem os tem. Outro dia vi anúncios de venda de fita K-7. Mais caras do que CD. Ou seja, os suportes físicos ainda vão resistir por tempos. Marina vai adorá-los.

  2. Os suportes físicos sempre possuem alguma utilidade, podem virar ‘busines’ ou melhor dizendo ‘bisines’.
    Continuo aguardando a definiçao sobre a coleçào ‘OS PENSADORES’ suporte insuportável.

  3. Dia 12 de abril, domingo, convocaçao dos ZELOTES para o FORA DILMA!

    “Se o andar de cima bater mais panela, só resta ao andar debaixo botar fogo no fogão”

    Que ocorram manifestações, vou torcer pelo Brasil.

  4. Querido vizinho, fiz o mesmo que você em relação às locadoras e mal posso acreditar que agora é a vez da Topcine!!! Como vamos fazer??? Há mais de um ano assinei o Netflix, mas só por uns meses. O catálogo é ridículo, não vale a pena. Algo terá de acontecer para o público que não gosta de blockbusters nem de cinemão americano… Enquanto isso, só nos resta comprar os mais importantes… Abs solidários.

  5. – OS SINOS DOBRAM EM 2014 COMO DOBRARAM EM 1964.

    A Globo vai convocar a manifestação, a PM vai organizar tudo para que as pessoas acabem indo ao ato como se fossem à praia e o governo de São Paulo provavelmente vai mandar liberar as catracas do metrô, como fez em 15 de março numa atitude inédita. Nào vai haver futebol às 16 hs pela TV. Jogo de futebol às 11hs para nào concorrer com o ato de coxinhas na avenida adredemente fechada e guarnecida pela eficiente polícia alkiminiana.

    É preciso reconhecer uma coisa, não deve ser fácil fazer oposição no Brasil. Porque o governo sozinho se derrota.

    Numa democracia séria e com um governo minimamente corajoso a Globo seria ao menos advertida por usar uma concessão pública para promover uma manifestação de caráter político partidário e com o objetivo de derrubar um presidente LEGITIMANTE eleito.

    É tudo tão bizarro que não dá pra acreditar que nenhuma liderança política do governo federal denuncie a canalhice. Vão esperar pra falar depois. E dessa forma ajudarão a promover um novo panelaço que será comemorado no FANTÁSTICO como um gol pela mídia tucana.

    Às ruas ZELOTES!

  6. Nào se preocupem com o fechamento do mercado de ‘suportes físicos’. Preocupem-se EM DAR SUPORTE FÍSICO às menifestaçòes golpistas.

  7. Servaz, você poderia ter limitado seu comentário a uma frase: a situação do suporte físico está insuportável.
    Mas não seria tão bom de ler…

  8. A locadora que eu usava e que era uma das poucas que sobreviviam fechou há mais de um ano. Resolvi aderir a uma loja on-line que parece que tem bastante sucesso. Funciona através de envios pelos correios e pela internet. Tem uma boa colecção de DVDs e estou satisfeito com o serviço. Graças a ela continuo a ver bons filmes sem sair de casa.

  9. Meu caro “sem-locadora”, também sou vítima desse mal. Você conhece a Cine-Pizza, na Cayowaa esquina com a Rua Havaí? Ainda deve funcionar. O acervo até que é bom embora não seja tão grande. Tente.
    Um abraço
    Gilberto

  10. Caro José Luís, ainda bem que você encontrou uma boa opção.
    Gilberto, muitíssimo obrigado pela dica. Sim, uma vez passei por ali e vi que existia essa Cine-Pizza. Mas tinha me esquecido dela. Vou dar uma passada lá!
    Um abraço a vocês, amigos.
    Sérgio

  11. Malu, veja aí a dica do Gilberto. Serve para você também!
    Um abraço.
    Sérgio

  12. LPs são mais caros porque têm um som mais fiel, se bem cuidados duram mais e são infinitamente mais bonitos. E comprar toca-discos virou moda…

    Quanto aos DVDs, é mais prazeiroso comprar e assistir os filmes em casa do que ir a essas salas de cinema que parecem celas, barulhentas, com celulares incomodando. E, para mim, mais barato do que tomar taxi ida e volta até o cinema.

    Essa volta ao passado seria bom que chegasse até às letras. Escrever à mão e a lápis com borracha, como disse Juan Rulfo e Galeano repetiu, seria uma bênção. Pelo menos eu cortaria metade do que escrevi aqui. MH

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