É altura de ajoelharmos. Faça-se justiça ao catolicismo. Essa religião de genuflexões, de padres-nossos e ave-marias, de em nome do pai e do filho, de mea culpa, mea culpa e salve-rainhas, é a mais cinematográfica das religiões. O catolicismo fez-se para plongées de púlpito, contra-plongées de altar, para o grande plano de sacrário, hóstia e cálice, para o plano geral da peregrina luz no interior de uma catedral. Vai-se à missa como se vai ao cinema e, em noites felizes, saía-se do cinema com a alma de crente que uma missa lavou.
Dou exemplos:
- Não é só por serem católicos, mas pense-se nas obras-primas de Hitchcock, Ford, Buñuel, Rossellini ou do nosso profético Manoel dos cem anos. O catolicismo (ou o anticatolicismo essa pequena e indiferente variação) é a torrente subjacente ou explícita de I Confess, de Seven Women, de Viridiana, de Roma, Città Aperta, de Benilde, ou a Virgem Mãe.
- E mesmo o prosaico Frank Capra, onde é que julgam que ele desencantou o anjo de It’s a Wonderful Life, senão na catequese que os pais italianos o fizeram frequentar?
- O cinema foi criado para o milagre. Para a irrupção abrupta e inexplicável do irracional e do maravilhoso. Acredito: basta-me o milagre de Viaggio in Italia, de Rossellini, o paralítico que anda, as muletas no ar. Rimos e choramos: um paralítico corre para que um casal, Ingrid Bergman e o improvável George Sanders, se reencontrem e redescubram, pelo espírito, a carne um do outro. Carne da minha carne.
- Num western, longe de batinas, turíbulos e confessionários, foi onde mais bem se filmou o perdão. John Wayne, herói de The Searchers, após busca obstinada, apanha a sobrinha que os índios raptaram e já tocaram com mais de um dedo. Vai matá-la para a libertar do pecado mortal. Levanta-a aos céus, o mais maldoso e negro olhar que olhos alguns já tiveram, e numa convulsão, que alastra do ecrã à sala, a culpa e o ódio são varridos pelo vento do deserto e, meu Deus, faz-se em John Wayne segundo a Tua palavra. A imagem dos duros braços de homem que, em paz, descem Natalie Wood ao chão é a mais redentora imagem da iconografia ocidental.
É uma mínima lista, uma oração da manhã. Hei-de voltar com outra, de Dreyer a Coppola, de Pasolini a Scorsese, para as orações da noite.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordteo com a antiga ortografia.
A foto no alto do post é de Viridiana, de Buñuel. A foto logo acima é de I Confess, de Hitchcock, no Brasil A Tortura do Silêncio.
It’s a Wonderful Life no Brasil é A Felicidade Não se Compra.
The Searchers no Brasil é Rastros de Ódio.
Um comentário para “O cinema, essa arte católica”