O cinema, essa arte católica

zzmanuelok

É altura de ajo­e­lhar­mos. Faça-se jus­tiça ao cato­li­cismo. Essa reli­gião de genu­fle­xões, de padres-nossos e ave-marias, de em nome do pai e do filho, de mea culpa, mea culpa e salve-rainhas, é a mais cine­ma­to­grá­fica das reli­giões. O cato­li­cismo fez-se para plon­gées de púl­pito, contra-plongées de altar, para o grande plano de sacrá­rio, hós­tia e cálice, para o plano geral da pere­grina luz no inte­rior de uma cate­dral. Vai-se à missa como se vai ao cinema e, em noi­tes feli­zes, saía-se do cinema com a alma de crente que uma missa lavou.

Dou exem­plos:

  1. Não é só por serem cató­li­cos, mas pense-se nas obras-primas de Hit­ch­cock, Ford, Buñuel, Ros­sel­lini ou do nosso pro­fé­tico Manoel dos cem anos. O cato­li­cismo (ou o anti­ca­to­li­cismo essa pequena e indi­fe­rente vari­a­ção) é a tor­rente sub­ja­cente ou explí­cita de I Con­fess, de Seven Women, de Viri­di­ana, de Roma, Città Aperta, de Benilde, ou a Vir­gem Mãe.
  2.  E mesmo o pro­saico Frank Capra, onde é que jul­gam que ele desen­can­tou o anjo de It’s a Won­der­ful Life, senão na cate­quese que os pais ita­li­a­nos o fize­ram frequentar?
  3. O cinema foi cri­ado para o mila­gre. Para a irrup­ção abrupta e inex­pli­cá­vel do irra­ci­o­nal e do mara­vi­lhoso. Acre­dito: basta-me o mila­gre de Viag­gio in Ita­lia, de Ros­sel­lini, o para­lí­tico que anda, as mule­tas no ar. Rimos e cho­ra­mos: um para­lí­tico corre para que um casal, Ingrid Berg­man e o impro­vá­vel George San­ders, se reen­con­trem e redes­cu­bram, pelo espí­rito, a carne um do outro. Carne da minha carne.
  4. Num wes­tern, longe de bati­nas, turí­bu­los e con­fes­si­o­ná­rios, foi onde mais bem se fil­mou o per­dão. John Wayne, herói de The Sear­chers, após busca obs­ti­nada, apa­nha a sobri­nha que os índios rap­ta­ram e já toca­ram com mais de um dedo. Vai matá-la para a liber­tar do pecado mor­tal. Levanta-a aos céus, o mais mal­doso e negro olhar que olhos alguns já tive­ram, e numa con­vul­são, que alas­tra do ecrã à sala, a culpa e o ódio são var­ri­dos pelo vento do deserto e, meu Deus, faz-se em John Wayne segundo a Tua pala­vra. A ima­gem dos duros bra­ços de homem que, em paz, des­cem Nata­lie Wood ao chão é a mais reden­tora ima­gem da ico­no­gra­fia ocidental.

É uma mínima lista, uma ora­ção da manhã. Hei-de vol­tar com outra, de Dreyer a Cop­pola, de Paso­lini a Scor­sese, para as ora­ções da noite.

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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordteo com a antiga ortografia.

A foto no alto do post é de Viridiana, de Buñuel. A foto logo acima é de I Confess, de Hitchcock, no Brasil A Tortura do Silêncio.

It’s a Wonderful Life no Brasil é A Felicidade Não se Compra.

The Searchers no Brasil é Rastros de Ódio.

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