Lincoln, de Steven Spielberg, é um superlativo elogio da prática da democracia, ou melhor, da sua “praxis”, como grita o recalcado marxista de 20 anos que, clandestino e bilioso, rumina nas profundas do meu fígado.
Com as sombrias cores de Rembrandt, às vezes uma sumida luz de La Tour, Lincoln canta a glória de “fazer coisas”. De “fazer”. E assim vemos que, quando salta das nuvens dos conceitos e se converte em acção, a democracia é sempre corrupta. Mais, quando desce à Terra, a democracia mata.
No filme mais nobre que já se fez desde o Young Mr. Lincoln de Ford, Spielberg retrata os últimos meses de vida de um presidente obcecado com o moralíssimo desígnio de abolir a escravatura na América.
Estamos num filme em que ouvimos mais do que vemos o rumor de uma nação em guerra. A tiro, a canhão, à baioneta, americanos matam americanos. É sobre esse surdo rumor que, em interiores atravancados de escuros móveis, cadeiras, mesas rudes e fumo espesso, se faz em sottovoce a democracia. Suave, por vezes sibilino, falsamente sereno, Lincoln quer que o Congresso aprove a 13ª emenda. Os votos não chegam? Para “fazer”, tudo vale, tudo se justifica: primeiro a manipulação dos congressistas do seu partido, depois a corrupção persuasiva de adversários, por fim, a dinheiro, a compra crua dos votos.
Lincoln corrompeu quem devia e vai fazer história. Só que o impertinente tempo histórico quer atropelar o presidente: os confederados dispõem-se a assinar a paz. Milhares de vidas serão poupadas, nem mais uma gota de jovem sangue americano para empapar Gettysburg. Mas se assinar a paz, Lincoln perde a oportunidade de aprovar a emenda. Para “fazer”, para levar a cabo a mais moral das missões, Lincoln mente, escondendo aos Congressistas a negociação com os Confederados, e deixa que a morte ceife, que a morte continue a matar. Por um propósito que considera um bem maior.
Há uma cena de Lincoln que, e copio o poeta, “entrou na minha vida como uma loucura branca”. Lincoln e a mulher (esses animais espasmódicos que são Daniel Day-Lewis e Sally Fied) discutem no quarto. Uma histeria de acusações, um ruídoso motor de culpas. Derrotado, de um deserto de cansaço, Lincoln arranca um último apelo: pede à mulher que o ajude a suportar o fardo. Sobre os seus ombros, confessa, abate-se a dor duma multidão de mortos, mentira veladas e corrupção. “Fazer” tem um preço. O sacrifício é condição da democracia.
Lincoln é um elogio desapiedado do “fazer”. E entre clamores, apupos, uma maravilhosa retórica, é também o filme em que um bando de homens brancos derrota outro bando de homens brancos para dar a liberdade a homens negros sem voz, nem poder. Não precisavam, dir-se-ia, mas “fizeram”. Com uma ideia, por uma ideia. Em Lincoln, o mais moral dos filmes.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Para “fazer”, tudo vale, tudo se justifica: primeiro a manipulação dos congressistas do seu partido, depois a corrupção persuasiva de adversários, por fim, a dinheiro, a compra crua dos votos.
Manuel, no Brasil com sua democracia tupiniquim, para “fazer”, vendáveis foram comprados, compradores de outrora escandalizam-se na mídia.
“Fazer” tem um preço. O sacrifício é condição da democracia”.
Meu recalque marxista resiste a hipocrisia de demagógicos democratas.
A “praxis” retratada pelo Spielberg, desde Lincoln, faz escola. Moral do filme: a democracia se faz por mercadores, em nome do povo, não importa o sacrifício.