O Natal vem de bicicleta

zzznatal1O Natal é uma bici­cleta e um par de patins. Foi assim que, pela pri­meira vez, fomos ver os “malu­cos”. Um bando de putos de bici­cleta e um deles, mania da ori­gi­na­li­dade, com um belo par de patins. Os malu­cos eram uns sol­da­dos a quem o mato, a tensa espera dos tiros que nunca mais vinham, dera cabo da cabeça em Angola. Tinham, dizia-se, cacim­bado. Havia quem insi­nu­asse que fin­giam, mas logo no pri­meiro Natal em que os visi­tá­mos, vi que tinham, no olhar, no ritmo das con­ver­sas, um grão que ris­cava o vidro.

Lembrei-me agora por­que foi esse bando de bici­cle­tas que vi quando vi o mais nata­lí­cio dos fil­mes, o E.T.. Tam­bém nós per­cor­ría­mos as ruas a uma velo­ci­dade ver­ti­gi­nosa. Uma das bici­cle­tas tinha essa sur­presa de arras­tar atrás um miúdo de patins, for­mando o todo uma espé­cie de cen­tauro, torso de ciclista, corpo de pati­na­dor, que mesmo a Spi­el­berg pare­ce­ria inverosímil.

Bem sei que há outros Natais no cinema. O mais cínico de todos inventou-o Billy Wil­der, em Sta­lag 17, quando pôs Otto Pre­min­ger, na pele de coman­dante de um campo de con­cen­tra­ção nazi, a dirigir-se aos pri­si­o­nei­ros ame­ri­ca­nos com este mimo: “Que tempo mais chato, este! E eu, que que­ria tanto dar-vos um Natal de neve, como aque­les a que vocês esta­vam habi­tu­a­dos!

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Não sei se have­ria uma ponta de cinismo ado­les­cente na pri­meira visita que fize­mos aos sol­da­dos cacim­ba­dos. E já estou a pen­sar em It’s a Won­der­ful Life, do sici­li­ano Frank Capra. É dia de Natal e Jimmy Stewart, face a uma situ­a­ção pare­cida com a nossa mise­rá­vel crise eco­nó­mica, decide suicidar-se. Quem manda, se alguém manda, faz des­cer do Céu à Terra um anjo para res­tau­rar a fé de Jimmy Stewart na vida. É rece­bido com os pés: “Você é mesmo o género de anjo que havia de me tocar. Uma espé­cie de anjo caído, não é? O que é que lhe acon­te­ceu às asas?

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À medida que fomos visi­tando a casa dos nos­sos malu­cos per­ce­be­mos que fôra­mos, nessa pri­meira visita de Natal, uns anjos sem asas, tão par­vos e desa­jei­ta­dos como Cla­rence, o anjo do filme de Capra, que volta a jun­tar Stewart à famí­lia num final que é um dos mais feli­zes “mila­gres” de toda a his­tó­ria do cinema. O mila­gre daque­les miú­dos des­tram­be­lha­dos foi o de terem con­se­guido que os sol­da­dos se orga­ni­zas­sem e fos­sem auto­ri­za­dos a vir dis­pu­tar com eles um jogo de fute­bol que ficou his­tó­rico. Con­fesso que fiquei a acre­di­tar em anjos, mas só em anjos sem asas, anjos de bici­cleta que levam com eles, atre­lado, um miúdo de patins.

Anjos des­ses têm sido vis­tos em fil­mes. Quem é que não viu e ouviu a har­mo­nia das esfe­ras nos Encon­tros Ime­di­a­tos ou anjos e que­ru­bins a peda­lar por céu e nuvens nas bici­cle­tas de E.T., fil­mes fei­tos só de luz por um cine­asta que deve ter sido aban­do­nado por Santa Claus no sapa­ti­nho de Hollywood?

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

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