Uma agulha no coração

Arrisco uma definição: o cinema é aquilo de que nos lembramos depois de esquecermos tudo o que aprendemos.

Quando, e é já hoje, comida, ruas, ou carros, nada for como dantes, quando o corpo com que nos conhecemos for só tatuagens e piercings, há-de acordar-nos na boca o sabor dum filme antigo. Vai saber bem. Será que nos salva?

Imagine que, cercados por panóplia sexual virtual e laboratorial, fertilização in vitro e afins, já nos esquecemos da transpirada exaltação a que chamávamos orgasmo. Em When Harry Met Sally (*), a mais álgida das actrizes, a insuspeita Meg Ryan, lembra-nos como fingir o que, um remoto dia, deveras sentimos. No cenário incomestível de uma casa de hambúrgueres, a romântica e neutra Meg, primeiro com um sussurro, a seguir com gemida respiração e, depois uns oh god, yes, yeess gritadíssimos, a cabeça atirada para trás e cabelos por arames, pasma Billy Crystal e silencia um restaurante inteiro. Quando já ninguém se lembrar – mas que boa cábula! – é assim! Até fingido, como ela tão bem finge, era bom e rebatia o valor calórico de qualquer hambúrguer.

E como nós portugueses, ao contrário dos franceses (ou será dos alemães?) gostamos de ser limpinhos, lembro outras utilíssimas lições.

No Peggy Sue (*), de Coppola, a deliciosa Kathleen Turner viajava no tempo e reencontrava-se com o avô, um simpático maçon. Fascinada com o ritual e aventalinho, pedia-lhe uma lição para a vida. “Se voltasse atrás, tinha cuidado melhor dos meus dentes,” conforta-a ele. Um singelo pedaço de sabedoria do velho Coppola: antes na farmácia do que noutra loja qualquer!

Do Whatever Works (*), de Woody Allen, ter-me-ei esquecido de tudo menos de um pormenor higiénico, exemplificado pelo protagonista, um professor de mecânica quântica. Para ter as mãos lavadas como deve ser – mãos lavadas clínica, cientificamente – abre-se a torneira e canta-se, todinho, o “Parabéns a Você”. Durante o tempo que demorarmos a trautear a execrável canção, ensaboam-se e esfregam-se os dedos, costas e palmas das garras com que a natureza nos dotou. O extermínio dos germes é garantido.

E numa crise extrema, com uma mulher em apuros nos braços, lembre-se de Travolta e Uma Thurman. No Pulp Fiction, vemos que Uma está mais morta do que viva: overdose de coca capaz de fazer flutuar um camião, um fio de sangue a escorrer-lhe do nariz para a boca. Vai morrer. Travolta segue as instruções de um lunático: tem de lhe espetar uma agulha de um metro no coração. Uma injecção de adrenalina dada com o vigor de uma facada e o cirúrgico rigor dum míssil. Travolta não falha (sejamos francos, Travolta nunca nos falhou!) e Uma ressuscita e salva-se.

Nem de propósito: quem é o Travolta que enfia uma valente agulha no feminino coração de Portugal?

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia

 

* When Harry Met Sally: no Brasil, Harry & Sally – Feitos um para o Outro.

Peggy Sue Got Married: no Brasil, Peggy Sue, Seu Passado a Espera.

Whatever Works: no Brasil, Tudo Pode Dar Certo.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *