Os homens não nascem iguais.
Esse ponto de vista tremendamente polêmico é explicitado pela escritora Nelle Harper Lee, no seu livro O Sol é Para Todos – To Kill a Mockingbird, no original.
A questão aparece durante o julgamento de Tom Robinson, o negro acusado de estuprar uma branca, que está sendo julgado por um júri só de brancos. O advogado de defesa, Atticus Finch, um homem de imensa estatura moral, sinônimo de integridade, de bom caráter, faz a afirmação: os homens não nascem iguais.
“Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, diz o Artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Nações Unidas em 1948.
O segundo parágrafo da Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, que influenciaria profundamente a Revolução Francesa, de 1789, e, de alguma forma, toda a história da humanidade daí em diante, diz:
“Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre eles a vida, a liberdade e a procura da felicidade.”
Ou, nas palavras exatas escritas pelos founding fathers, em especial Thomas Jefferson:
“We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness.”
“Alguns são mais espertos que outros, alguns têm melhores oportunidades”
No julgamento de Tom Robinson, Atticus Finch tem um desempenho calmo, controlado, como é de seu estilo, mas firme, incisivo, competente. Nas suas considerações finais, antes de os jurados brancos da cidade racista do Estado racista do Alabama se recolherem para decidir a sorte do réu negro acusado de estuprar uma branca, Atticus Finch diz:
– “Uma coisa mais, senhores, antes que eu termine. Thomas Jefferson disse uma vez que todos os homens são criados iguais, uma frase que os ianques e certos membros do Executivo em Washington gostam muito de atirar na nossa cara. Neste ano da graça de 1935, determinadas pessoas estão com uma tendência para utilizar essa frase fora de propósito, aplicando-a em todas as situações. O exemplo mais ridículo que me ocorre agora é o dos indivíduos encarregados da educação pública que estão aprovando os estúpidos e os ociosos juntamente com os diligentes – porque todos os homens são criados iguais, dirão os educadores com ar solene, as crianças não promovidas de série sofrerão um terrível sentimento de inferioridade. Mas nós sabemos que todos os homens não nascem iguais, não no sentido que algumas pessoas querem nos impingir: alguns são mais espertos do que outros, alguns têm melhores oportunidades porque nasceram com elas, alguns homens fazem mais dinheiro do que outros, algumas senhoras fazem bolos mais gostosos do que outras, algumas pessoas nascem com talentos muito superiores aos do normal dos homens.
“Entretanto, há um lugar neste país em que todos os homens são considerados iguais – existe uma instituição que considera um pobre igual a um Rockefeller, um homem obtuso igual a um Einstein, e um ignorante igual a qualquer reitor universitário. Essa instituição, senhores, é o tribunal de Justiça, seja a Suprema Corte dos Estados Unidos ou o mais humilde tribunal do país, seja este honrado tribunal a que servem. Nossos tribunais têm suas falhas, como qualquer instituição humana, porém neste país os tribunais são os grandes niveladores, em nossos tribunais todos os homens são criados iguais.”
Cutuca todas as onças com vara curta, mexe fundo em vários vespeiros
Essa fala de Atticus Finch me parece absolutamente impressionante. Mexe em coisas importantíssimas, seriíssimas. É polêmica, corajosa, ousada: cutuca todas as onças do mundo com vara curta, mexe fundo em vários vespeiros perigosíssimos. Mexe, por exemplo, na questão das “políticas afirmativas”, das cotas para minorias. Mas mexe ainda mais fundo do que isso: mexe com princípios que, desde 1776, norteiam a forma como a civilização se organiza. Mexe com princípios religiosos, com princípios filosóficos.
Toda a nossa educação – nos países ocidentais, pelo menos – se baseia nesse princípio, o princípio de que todos os homens nascem iguais. “Todos os homens são criados iguais” – criados no sentido de nascidos, de feitos pelo Criador.
O bom tom, o politicamente correto que sempre nos ensinaram é isso: ao nascer, o bebezinho que vai virar no futuro Picasso é idêntico ao bebezinho que no futuro será Sarney. O meio social, a sociedade, as influências externas é que vão determinar as escolhas de cada ser humano, e fazer com que um seja Picasso, e o outro, Sarney.
Isso é uma grande besteira, ousa nos dizer Harper Lee, através de seu personagem Atticus Finch.
Se nos abstrairmos de alguns pontos que são específicos da história, da trama do romance, da época em que se passa – o orgulho etnocêntrico americano, a questão dos sulistas diante dos ianques, a referência a mulheres como fazedoras de bolo, que causaria o furor das feministas–, o que Harper Lee está colocando é que o texto original da Declaração da Independência dos Estados Unidos está errado. Não, diz ela, os homens não são criados iguais, não nascem iguais.
Há quem nasça Pelé, Picasso, Einstein – e há quem nasça Sarney, Suzane Richthofen, Hitler.
Há gênios e há imbecis. Há trabalhadores, empreendedores, e há preguiçosos, indolentes. E, sim – há pessoas propensas ao bem, e há pessoas propensas ao mal.
A Declaração dos Direitos do Homem corrigiu a frase de Jefferson
Embora essa tese, essa posição, possa chocar meio mundo, a verdade é que a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem corrigiu a frase absoluta de Thomas Jefferson.
Entre “Todos os homens são criados iguais” e “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos” vai um abismo, as cataratas do Iguaçu, o Grand Canyon.
“Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.” Esse é o princípio certo, a máxima exata – embora, a rigor, a máxima exata devesse ser “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade, direitos e deveres”.
Até porque, nesta nossa pobre, atrasada América Latina, e em especial neste nosso pobre, atrasado Brasil, que parecem perseguir hoje o futuro que o passado já jogou no lixo da História, anda cada vez mais forte e generalizada a tendência a se achar que o Estado pode e deve tudo, e as pessoas só têm direitos – e não deveres.
Dezembro de 2010
Excelente, caro Sérgio! Não li o livro, mas o nome do personagem parece ser (creio eu) propositalmente colocado como voz solitária — um ‘canário de sótão’, posto a defender uma correção fundamental.
abraço
Muito obrigado pelo elogio, mas principalmente pelo comentário, caro Paulo. Você sabe que, embora o livro e o filme tenham me marcado muito, e eu tenha acabado de reler o livro, nunca tinha me ocorrido isso que você sacou de imediato sobre o nome do Atticus Finch?
Bela sacada!
Um abraço, e obrigado.
Sérgio
Sergio, muito bons os dois textos sobre o Mockingbird. Não sabia da amizade de Harper Lee com o Capote.
Há algo que faz os homens nascerem diferentes – a genética – que é responsável não só pela cor dos olhos ou o tamanho dos pés e há algo que os torna diferentes, mesmo irmãos gêmeos, que é a ação do meio em que vivem.
Nossa cidade, nosso país, nosso mundo precisa de mais pessoas como Atticus Finch e de mais pessoas que se levantem ao passar um Atticus Finch.
Feliz Natal (atrasado) e um excelente Ano Novo pra vc e sua familia!
Abraço