O pianista da máquina de escrever

Jorge Sabongi foi ao escritório de uma metalúrgica pedir emprego. Com um pouco de má vontade, é verdade. Não estava interessado em trabalhar. Contava 14 anos. Seu bisavô e seu avô tinham tido escolas de datilografia. Seu pai também tinha uma.

 O encarregado do pessoal, na empresa, olhou para aquele menino e não deu grande coisa por ele. Mandou que se sentasse à máquina de escrever e redigisse uma carta comercial. Jorge costumava datilografar 60 palavras por minuto. Metralhou um texto de memória, rápido e perfeito.

 “Você começa amanhã”, disse o homem do pessoal, assombrado. Ligou para todas as seções, e chamou os funcionários. Umas doze pessoas vieram. O homem pediu a Jorge que datilografasse outra carta. Ele o fez, com a mesma rapidez. “É assim que eu quero que vocês escrevam”, disse o encarregado à platéia.

 “Eu gostava muito de jogar botão, formava times”, lembra-se Jorge em seus 50 anos. “Meu pai me mandava procurar emprego, mas eu ia à feira comer pastel”. Naquela vez, não teve jeito. Assumiu o trabalho.

 Estava havia seis meses na firma quando uma moça bonita fez o teste, cometeu 15 erros, mas foi contratada com um salário maior que o dele. Demitiu-se.

 Mal chegou em casa, alguém veio com a notícia: a metalúrgica em frente precisava de um datilógrafo. Empregou-se pelo dobro do salário. Fez carreira, e chegou a assistente de diretoria.

 Cursava faculdade de Economia. Resolveu que era hora de mudar de vida. De família árabe, pai espanhol, ele próprio cozinhava bem. Em 1982, abriu uma casa de chá egípcia, a Khan el khalili, até hoje famosa pela apresentação da dança do ventre. Está no mesmo lugar, na Vila Mariana.

 Jorge aprendeu datilografia aos oito anos. As aulas na escola de seu pai pautavam-se por um método de seis meses. Uma hora de aula, de segunda a sexta-feira. Preço módico, o equivalente a R$ 40 por mês.

 Na primeira lição, o aluno treinava durante uma hora as letras a,s,d,f,g com a mão esquerda. E h,j,k,l, ce-cedilha, com a direita. Mais para frente, uma taboinha era colocada um palmo acima do teclado. O aluno não via as teclas, assim aprendia a escrever sem olhar para elas.

 Ao ser diplomado, no fim do curso, tinha não só a habilidade para datilografar, mas conhecia o texto de cartas comerciais, ofícios, e outras exigências da época. Também aprendia postura para sentar à frente da máquina. Estava pronto para o mercado de trabalho.

 Nas horas de folga, pai e filho faziam “corrida” de datilografia, cronômetro na mão. Aos 11 anos, Jorge já batia 60 palavras por minuto. Seu pai, afinal o mestre, 67.

 O texto comercial formal, e as escolas de datilografia, desapareceram. Nos primeiros tempos de sua casa de chá, Jorge precisou algumas vezes de datilógrafo. Mas não teve paciência com eles. Sentou à máquina de escrever e disparou a metralhadora.

Uma notinha

Valdir Sanches me mandou este texto com a seguinte explicação:

“Este mês, no dia 24, comemora-se o Dia do Datilógrafo. Uma data que a informática tornou sem sentido. Este é um dos textos que fiz para matéria publicada no Diário do Comércio.”

Pensei em botar aqui no pé do belo texto de Valdir umas mal traçadas sobre datilografia. Depois pensei melhor: vou querer escrever umas mal traçadas sobre o tema num post à parte.

Maio de 2010

4 Comentários para “O pianista da máquina de escrever”

  1. Não sei se se trata do mesmo Valdir Sanches. Se for, que coincidência! Ao chegar em São Paulo em 1968, um dos telefones para contato que levava no bolso era de Valdir Sanches, fornecido por amigos comuns da cidade de Amparo (próxima à minha cidade de origem, Itapira)…

  2. Ah, sim, eu não disse: encontrei-o algumas vezes, nos primeiros tempos, depois nos perdemos de vista. Lembro-me de seu sempre grande sorriso e seu generoso acolhimento.

  3. Esta crônica do Valdir remete a certas situações nas redações d’antanho, em que tivemos como colegas datilógrafos extraordinários, meio mágicos, nunca com todos os dedos. Lembro de um, na velha Ultima Hora da avenida da Luz, que batia seus textos com um dedo apenas da mão direita, mesmo porque, entre o indicador e o médio da esquerda, empunhava o cigarro constantemente. Nome da fera: Helmuth Grübel.Já morreu, lamentavelmente. Era meu amigo.

  4. Lembro-me de outra fera: José Oliveira Santos, o Jota Oliveira. Mato-grossense (sulino) de Arapuá, região de Três Lagoas. Trabalhou em rádios de Maringá e Londrina. Foi editor regional da Folha de Londrina em sua fase mais promissora. Trabalhou ainda na extinta Última Hora-PR e na sucursal da Folha de S.Paulo em Londrina. Datilografava com todos os dedos.

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