Dylan Volume 3 – Batendo na porta do céu

Dizem as revistas semanais que 1997 foi o ano da morte de Diana, o ano das fotos feitas pelo filhotinho do satélite em Marte, o ano de Dolly, a ovelha clone, o ano de Débora, a sem-terra que apareceu em foto no Estadão e depois virou sem-roupa e agora é com-programa. Metida a besta, a Veja não diz que 1997 foi o ano em que Xuxa anunciou que vai ter um filho – embora, para quase todos os brasileiros que vêem televisão, esse tenha sido o principal fato do ano.

Para mim, entre outras coisas, 1997 foi o ano em que Robert Allen Zimmermann fez o disco mais belo, mais trágico, mais profundo da sua imensa infinita carreira.

A Newsweek deu capa no meio de outubro. Foto P&B de Richard Avedon, o grande retratista americano da segunda metade do século. A edição de arte da matéria é um brilho: são seis páginas, três duplas, todas com fotos de Avedon. Na primeira dupla, uma foto dele hoje, velhinho, 56 anos parecendo muito mais. Na segunda dupla, uma foto dele menininho, em 63, 22 anos de idade, o protótipo da geração folk, tendo aprendido com Woody Guthrie e servindo de porta-voz e alto-falante para a grande mudança do Império, o chacoalhar que levou ao fato de que hoje negros e todas as demais minorias têm garantido o mesmo espaço que os putos dos Wasps. Na terceira dupla, uma foto dele em 1965, na fase Blonde on Blonde, a fase muda tudo se quiser, “the Beatles have gone folk, Bob Dylan has gone pop”.

A abertura da matéria diz que Dylan fez para música popular o que Einstein fez para a física. A encarnação da contracultura. O autor de canções do século.

Sei escolher os meus ídolos, pensei, quando vi a matéria. Eu achava tudo isso mais de 30 anos antes de a Newsweek admitir.

A Ana Maria Bahiana fez um texto lindíssimo que o Estadão publicou sobre o disco. Tive inveja dela, quando li. Texto lindíssimo. Não tenho a pretensão de fazer nada parecido, até porque ela já fez, e é lindíssimo, e é definitivo.

Só gostaria de juntar uma ou duas coisas.

Quando era muito novo, Dylan criticou a forma como Peter, Paul e Mary gravaram “Don’t think twice, it’s all right”. Disse que eles cantaram quase como se fosse uma música alegre. Disse que ele mesmo, em sua gravação original, no segundo disco, de 1962, com 21 anos, não cantava direito; que ele teria que esperar muito tempo até poder cantar direito aquela canção, que na verdade é um blues, e para se cantar blues é preciso viver muito e sofrer muito.

Ele ficou seis anos sem gravar música de sua autoria. Durante esse tempo todo, gravou dois discos dos velhos, dos pioneiros, dos que cantavam o blues quando ele não havia nascido. Hoje, parece que ele estava se preparando para Time out of mind. Ele estava aprendendo, ou ensaiando, a grunhir como os velhos bluesmen dos anos 30.

A matéria da Newsweek diz que o produtor, Daniel Lanois, queria usar as coisas tecnológicas mais modernas, e ele, Dylan, queria fazer tudo como fazia no começo dos anos 60, tocar tudo de uma vez só, sem overdub, sem remix, sem porra nenhuma. O som do disco é exatamente isso, a soma da tecnologia do produtor com o estilo gravar-direto-sem-porra-nenhuma-de-artifício (que era o estilo do Robert Johnson, que era o estilo do Guthrie, que era o estilo de Dylan nos três primeiros discos e meio). O som é absolutamente maravilhoso, definitivo, final.

As porras das palavras são do mais absoluto e sensacional brilho.

Depois de décadas de criativol, de imagens loucas, de hipérboles, de paráfrases, do escambau, de flertar com todos os surrealismos, modismos, putaqueopariudismos, de ser fellinniano, buñueliano, bergmaniano, aquele poeta francês que acabou traficando escravos e de cujo nome não me lembro agora-ismo, ah, sim o Rimbaud, pois é, rimbaudismo, ou rimbaudliano, o velho judeuzinho voltou a falar como ser humano. Não procura fazer poesia. Fala com o estômago, o intestino, ou então, o que é o mesmo e é igual, as frases simples, óbvias, diretas, duras, puras, de ser humano e portanto condenado a esta insanidade incompreensível que é a vida.

Nas frases simples, óbvias, diretas, duras, puras, de ser humano e portanto condenado a esta insanidade incompreensível que é a tal da vida, esse senhor judeu que segundo a Newsweek é o melhor autor de canções do século volta e meia fala de um amor, e de um você. O sentido trágico, imenso, gigantesco, planetário, é que ele não está falando de Sarah, a mulher que diretamente o inspirou nos seus melhores discos de 1974 e 1975. Não. Ele está falando da danação eterna do ser humano, como gênero, número e grau. Ele está falando em nome de cada um dos cinco bilhões de seres humanos que existem hoje, ou dos dez bilhões que já existiram e se perguntaram, ou não, o que porra estão fazendo aqui. E se apegaram à idéia de que o amor pode ser a explicação, a saída, o sentido.

É o blues no sentido que o blues não tinha, antes dele. O sentido mais profundo que se poderia imaginar. É o blues metafísico, inventado por um judeu que na verdade é muito mais preto do que muito preto, e que carrega 56 infindáveis anos de vida e mais 6 mil anos de sofrimento atávico.

Estive andando através das noites de verão, o jukebox tocando baixo. Ontem tudo estava indo depressa demais, hoje está tudo devagar. Não tenho para onde ir, não tenho mais nada para queimar. Não sei se, caso eu te visse, te daria um beijo ou te mataria. Provavelmente você não iria se importar. Você me deixou chorando na soleira da porta. Na noite passada dancei com uma estranha mas ela apenas me fez lembrar que você é a única. Você me deixou chorando na soleira da porta. (“Standing in the doorway”)

Meu sentido de humanidade foi embora pelo ralo. Atrás de cada face bonita existe um tipo de dor. Ela me escreveu uma carta, ah, ela escreveu de um jeito tão terno. Ela conseguiu colocar em palavras o que tinha na mente. Só não consigo entender por que ela teria que dar importância a isso. Não está escuro ainda, mas logo vai ficar. Não estou procurando nada nos olhos de ninguém. Às vezes o fardo fica maior do que eu consigo suportar. Não está escuro ainda, mas logo vai ficar. Não consigo sequer lembrar do que eu estava fugindo quando vim para cá. (“Not dark yet”)

A cada dia a lembrança de você fica mais distante, ela não me persegue mais como antes. Estou andando aqui bem no meio do nada tentando chegar ao céu antes que fechem a porta. Quando você pensa que perdeu tudo, você descobre que sempre pode perder um pouco mais. (“Tryin’ to get to heaven”)

Quando aparecem as sombras da noite e as estrelas, e não há ninguém pra secar suas lágrimas, eu poderia te pegar durante milhões de anos, pra fazer você sentir o meu amor. Fico com fome, fico negro e triste, me reastejaria pela avenida, não há nada que eu não pudesse fazer pra que você sentisse o meu amor. Eu poderia fazer você feliz. (“Make you feel my love”)

Anotação pessoal em 26/12/1997.

Os outros textos sobre Bob Dylan neste site:

Dylan Volume 1 – O artista que é três, cinco, vários, alguns milhões

Dylan Volume 2 – O press-release do disco Infidels

Dylan Volume 4 – Um gênio que não pára

Dylan e Joan Baez cantam na Casa Branca as músicas que mudaram os EUA

 

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