Mesmo alguém que não se chamasse Coelho estremeceria ao ouvir a voz melancólica de Pedro I, rei de Portugal, ordenar: “Preparem-me esse coelho que tenho fome.” Num conto de Os Passos em Volta, de Herberto Helder, um dos assassinos de Inês, Pêro Coelho, de joelhos entre os guardas, reconhece o direito de vingança do monarca e saboreia a ironia da frase real. A crueldade do rei precisa de ter a medida sangrenta e bárbara equivalente ao assassínio que deu asas de lenda ao amor de Pedro e Inês, preservando-o para a eternidade.
Há quem jure que Hannibal Lecter é uma criação do escritor Thomas Harris que o cinema adaptou. Tolice. Hannibal é uma personagem viva que se apoderou do corpo do actor Anthony Hopkins durante um filme, The Silence of the Lambs, abandonando-o, sem préstimo, deste então. Entre D. Pedro I e Hannibal há um traço gastronómico comum, o gosto de ambos pelo cru. Tenho dois exemplos na ponta da língua.
Trazem a Pedro, numa bandeja, o coração que acabaram de arrancar a Coelho pelas costas. Pulsa ainda. O rei exibe-o para que a multidão aplauda e sacie o seu justo ódio. A seguir, os dentes do rei enterram-se com gosto na víscera tão quente, tão humana.
Numa das mais brilhantes cenas de Silence of the Lambs, filme de uma sensibilidade inocente, Hannibal ataca os dois guardas que o vigiam. Com uma gula intempestiva, come a boca de um, num beijo sangrento, tártaro, digamos; depois arranca ao outro, com delicadeza, a pele inteira do rosto, que literalmente veste, encenando a fuga perfeita.
Pedro I de Portugal e Hannibal, o canibal, partilham o mesmo género de amor pela humanidade. É um amor desiludido e triste. O desmedido amor que têm pelo próximo fá-los compreender que só comendo-o, integrando-o no próprio corpo, o podem salvar.
Para se redimir, o coração de Pêro Coelho quer ser comido pelo rei. Também as vítimas de Hannibal Lecter desejam o perigo, a excitação de estar ao alcance dos poderosos maxilares dele, da boa mandíbula, dentes firmes, língua que de vez em quando ele agita, viperina, na boca impiedosa. Querem que lhes caia uma gota de saliva em cima. Clarice, a personagem que Jodie Foster incarna no filme, quando conhece Hannibal experimenta um frémito tão sexual que se pode cheirar. Jodie Foste nunca é comida, mas não é certo que não tenha pena. Não poderá dizer, como Pêro Coelho, “irei crescendo dentro do rei que comeu o meu coração.”
“Preparem-me esse coelho que tenho fome.” A essas palavras tenras do rei português, Hannibal, oferece a rima certa no fim de Silence of the Lambs. Despede-se de Clarice, que não comeu, com aristocrática ironia: “Tenho um amigo para o jantar.” Talvez a perspectiva de um futuro canibal possa, por delicadeza, dar outro sabor à humanidade que somos.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Ai Manuel, assim você me mata com suas analogias cinematográficas e literárias.
Fui obrigado a reler Camões e lembrar da minha professora de literatura, amante de Camões, Fernando Pessoa e Alexandre Herculano.
Sua crônica me fez conhecer o contemporâneo Herberto Helder que lerei com curiosidade e antropofagia.
“Gosto deste rei louco, inocente e brutal. Puseram-me de joelhos com as mãos amarradas atrás das costas, mas endireito a cabeça, viro o pescoço para o lado esquerdo, e vejo o rosto violento e melancólico do meu pobre Senhor”.
“Somos ambos sábios à custa dos nossos crimes e do comum amor à eternidade”.
“Vejo o o meu coração nas mãos de um carrasco”
“Eu também irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do rei que comeu o meu coração”.
Miltinho,
tenho a certeza de que vai converter-se ao Herberto. Um grandesíssimo poeta em qualquer língua. Esse livrinho de contos, “Os Passos em Volta” é um pequeno prodígio.