Do testezinho de Hélio Cabral à tristeza

“Testezinho aí, senhor?”, ele perguntava. Pegava uma foto, cena de um filme, tapava pedaços que poderiam revelar qual era o filme, qual era o ator ou atriz que aparecia na foto (muitas eram fotos de publicidade, enviadas aos jornais pelos distribuidores), e fazia a pergunta: “Testezinho aí, senhor?”

Hélio Cabral queria saber quem acertava o teste, quem saberia dizer o nome do ator ou da atriz da foto, e qual era o filme.

Isso acontecia toda noite na velha redação do Jornal da Tarde, no quinto andar do prédio da Major Quedinho. A tradição se manteve quando mudamos para o sexto andar, e depois, quando houve a mudança para o então prédio novo, na Marginal.

Até que um dia, de repente, Hélio Cabral parou de brincar. Por motivos extremamente pessoais, que jamais entendi perfeitamente. Parece que alguém o agrediu, e ele fechou-se em copas, como um tatu-bola. Jamais voltou a sorrir.

***

São insondáveis os caminhos da memória da gente. Me lembrei de Hélio Cabral fazendo sua pergunta de todos os fechamentos – “Testezinho aí, senhor?” – ao ver a homenagem prestada pelo Google na sua página de abertura a Saul Bass, o gênio do design gráfico, pelo dia em que ele faria 93 anos. Saul Bass morreu em 1996, aos 76 anos.

Fiquei absolutamente encantado com o filmetinho que o Google botou no lugar de seu próprio logo, no dia 8 de maio, dia de nascimento de Saul Bass. Tuitei, facebookei. O filmetinho, que dura pouquíssimo, e vem ao som da “Unsquare Dance”, do disco Time Out de Dave Brubeck, mostra trechos de diversos filmes que tiveram a honra de ter seus créditos iniciais e cartazes desenhados por Saul Bass.

E aí, no Facebook, provoquei: “Cinéfilos de todos os tempos, quantos filmes vocês conseguem identificar na homenagem do Google ao Saul Bass?”

Impressionante: a resposta foi quase, como diz o samba, o silêncio que atravessa a madrugada.

Márcia Lobo comentou. Sandro Vaia retuitou, fez elogio a Saul Bass.

Carlos Bêla, atento, ligado, como sempre, comentou no Face: “ Ótima animação, gostei demais. Sou fanático pelo Saul Bass. referência de animação e design até hoje”.

Mas não é tanto a reação que importa. O que importa é que, depois que fiz a provocação – quantos filmes vocês conseguem identificar? –, me lembrei, de repente, de Hélio Cabral fazendo os testezinhos.

***

E a lembrança é boa, gostosa, agradável, mas ao mesmo tempo é dura demais, porque traz inevitáveis comparações.

Hélio Cabral fazia seus testezinhos no início dos anos 1970. Sei lá se ele já fazia isso em 1966, quando o JT começou; cheguei lá em 1970, e ele fazia os testezinhos. Umas cinco, oito, dez pessoas se reuniam para os testezinhos. Era junto da mesa da Diagramação, para onde eram levadas as fotos, as fotos em papel, que sairiam no jornal do dia seguinte, e Hélio Cabral ia até lá quando a Editoria de Variedades enviava as fotos dos filmes que iriam passar na TV no dia seguinte, e berrava que era a hora do testezinho.

Eu era um foquinha, um iniciantezinho de merda, e observava aquilo embasbacado.

Aos 20 anos, foquinha, iniciantezinho de merda no jornalismo, eu já tinha visto muito filme. Epa! Milhares deles. Tinha visto muito Godard, Glauber, toda essa coisa chata que agora, depois de velho, não tenho mais que ver. Mas também já tinha visto muito do que realmente importa: Bergman, Buñuel, Fellini, Antonioni, mas, sobretudo, e isso sim é o que vale a pena na vida, Ford, Hawks, Capra, Truffaut…

Mas não me lembro de ter acertado muito testezinho do Hélio Cabral. Realmente não me lembro.

***

O que dói, e dói muito, é lembrar da velha redação do JT, aquela coisa vibrante, emocional, emocionada, emocionante, e pensar naquilo que o jornalismo virou, tem virado, nos últimos anos.

Tudo bem: o JT foi uma coisa especial na imprensa brasileira. Havia tempo de sobra para trabalhar, e não se exigia que o jornal desse todas as notícias importantes do dia. O JT selecionava o que os editores consideravam os melhores assuntos do dia, e tentava ir fundo neles. Não havia ainda, naquele início dos anos 70, a cobrança no dia seguinte: nós não demos tal matéria. Importava era ter dado bem as matérias que pareceram as mais interessantes.

Era outro tempo, outro mundo, outro jornalismo. É óbvio que não dá para comparar com o mundo, o jornalismo de hoje.

Mas o fato é que a redação interagia, as pessoas falavam uma com a outra, perguntavam coisas umas às outras. Enquanto Hélio Cabral fazia seus testezinhos, a gente ia de mesa em mesa perguntar aos colegas qual das três opções de títulos que tínhamos feito pareciam as melhores.

Os jovens aprendiam com os mais velhos. Os jovens respeitavam os mais velhos porque eles sabiam mais.

E aí lembrar daquilo dói, quando vemos o que se faz hoje, em redações com cada vez menos gente, e gente sendo obrigada a fazer mais.

Não é uma questão de reclamar dos jornalistas de hoje. A culpa não é deles.

Mas a verdade é que, nas últimas décadas, o jornalismo brasileiro (sei lá como é o jornalismo nos outros países) vem se encaminhando celeremente para o suicídio coletivo.

E o apavorante é que, sem imprensa sólida, sem grandes, poderosas, ricas (e portanto independentes dos governos de plantão), a democracia sai profundamente sacrificada.

Só quem lucra com a crise da grande imprensa são os donos do poder.

E não adianta os donos do poder de hoje virem dizer que eles são pró-povo, e a imprensa é a defensora dos privilégios, das oligarquias. Isso é bla-bla-blá idiota, novilíngua petista. Todos sabemos que as oligaraquias retrógradas – os Sarneys, os Collors de Mello, os Barbalhos – são aliadas do partido que se diz dos trabalhadores, e na verdade hoje é formado pelos gafanhotos que tomaram de assalto o país.

Maio de 2013

Comecei esse texto no dia 8 de maio, a quarta passada, e não o retomei. Voltei a ela só nesta sexta, dia 10, depois de ler o belo (e triste) artigo do meu amigo Sandro Vaia no Blog do Noblat e aqui mesmo sobre como o jornalismo anda preguiçoso, leniente, incompleto.

Ah, sim, o testezinho do Google. Em um filmete de 1 minuto e 21 segundos, identifiquei O Homem do Braço de Ouro, Tempestade Sobre Washington, West Side Story, Um Corpo que Cai, Intriga Internacional, Anatomia de um Crime e A Volta ao Mundo em 80 Dias. Alguém aí vê outros filmes? 

2 Comentários para “Do testezinho de Hélio Cabral à tristeza”

  1. O Jornal da tarde era uma escola de bons jornalistas. Sandro Vaia,Sérgio Vaz, Helio Cabral,Ulisses Alves de Souza,Fernando José Dias da Silva,e outros que conheci aqui. A crise da grande imprensa é o lucro petista.
    “Testezinho aí, senhor?”Can beck Shane! Voltem!

  2. Delicioso texto de Servaz, como o chamamos, me trouxe à memória a intelectualmente agitada redação do JT. Da minha parte, não participei tanto de tudo o que corria, porque era repórter e, como se sabe, lugar de repórter é na rua, apurando notícias. Servaz bem poderia escrever livro de memórias sobre a redação do até hoje inigualável JT.

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