Há dois mil anos, num vilarejo poeirento e esquecido da Palestina, chamado Nazaré, um anjo apareceu na casa de uma moça de nome Maria e anunciou-lhe que ela seria mãe, embora nunca tivesse se deitado com um homem. No tempo devido nasceu um menino numa gruta abandonada, rodeado de animais e pastores. Mesmo que naquele tempo se dissesse que nada de bom poderia sair de Nazaré, o tal menino foi anunciado como a luz do mundo. Acredite-se ou não, o menino cresceu entre os mais pobres até chegar à idade adulta quando tornou-se protagonista de uma revolução nunca vista, uma exibição de realismo mágico que mudou o mundo e dividiu a História em antes e depois dele.
Dois mil anos depois , no final de um agosto de 1910, uma história semelhante se repetiria. Chegava a Aracataca, na Colômbia – vilarejo não menos pobre e poeirento que Nazaré – a família Márquez Iguarán, depois de uma viagem de dois anos atravessando matas, rios e intempéries, onde compraram uma casa perto da praça principal do povoado. Até então, ninguém imaginava que alguma coisa de boa pudesse sair de Aracataca.
Engano. No dia 6 de março de 1927 o lugar celebrou a chegada do primogênito de Luisa Santiaga e Gabriel Elígio, embora muitos preferissem dizer que nascera o neto do coronel Ricardo Márquez Mejía e Tranquilina Iguarán, avós maternos com quem o menino Gabriel foi criado até os oito anos numa terra coberta de bananeiras sob o sol inclemente do Caribe colombiano.
Era um menino num casarão de mulheres, atordoado pelas crenças em coisas do além cultivadas pela avó e pelas lembranças de guerras do avô. Foram oito anos de vivências que o tornaram universal em 1967, quando publicou um livro chamado Cem Anos de Solidão. Uns chamam livro de épico, embora Gabo acredite que o livro que o impedirá de cair no esquecimento seja a história de seus pais recriada em O Amor nos Tempos do Cólera. A meu ver este papel será desempenhado por Crônica de uma morte anunciada, Ninguém escreve ao coronel, O outono do patriarca, Cheiro de goiaba, Memória de minhas putas tristes, Viver para….
Na literatura de Gabriel García Márquez é como se a linguagem existisse para amenizar os horrores da vida, submergindo o leitor, sem que ele se dê conta, no suave e confortável vale dos sonhos. A literatura latino-americana não conquistou verdadeiramente o mundo até a segunda metade dos anos 1960, a partir do triunfo escandalosamente sem precedentes de Cem Anos de Solidão, livro que fincou os pilares do realismo mágico latino com a perfeição de seus sons, ritmos, prosa…
Através desse livro o mundo conheceu Macondo – o outro nome de Aracataca –, território literário de Gabo, onde transcorre grande parte de sua criação, à qual voltou um dia para descobrir que entre a realidade e a nostalgia estava a matéria-prima do seu ofício. Em Macondo viviam os Buendía, o princípio da lenda, a estirpe de sua obra mais famosa que levava cravada no peito a flecha da solidão e na qual se concentravam maravilhas, prodígios, milagres como aquele de Nazaré.
No ano de 2012 celebraram-se os 60 anos do primeiro conto de Gabriel, “A Terceira Resignação”; 40 anos da publicação de Cem anos de Solidão e 25 anos desde que o autor recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.
Antes de tudo, em 2012 completaram-se 80 anos do surgimento para a literatura de uma forma nova de narrar, um universo e uma linguagem próprios, um escritor tímido que detesta perguntas e ama o silêncio, com um encanto pessoal que seduziu intelectuais, políticos e, sobretudo, leitores em todas as línguas do planeta.
Quis uma ironia do destino que o ano de 2012 fosse também marcado pela tragédia da demência senil que se abateu sobre García Márquez, tornando-o incapaz sequer de reconhecer familiares e amigos íntimos, muito menos de escrever. O que será dos personagens do seu universo literário único, agora que perderam a voz? Aracataca continuará lá, mas o que será de Macondo? O que será dos sonhos desse autor, um dos quais era ser pianista de um bar à meia luz, tocando sem que ninguém o visse numa esquina recôndita de algum lugar do Caribe, para que os amantes pudessem se amar com sofreguidão?
Difícil admitir que nunca mais teremos um novo livro de Gabo nas estantes das livrarias. Tampouco leremos os artigos do jornalista cujo grande mérito foi demonstrar que uma grande reportagem também é grande literatura.
Do homem que sempre escreveu como se a vida fosse uma invenção da memória, foi roubada sua principal ferramenta de trabalho, justamente a memória. No caso de um escritor, equivale a seguir vivo mesmo já estando morto. Se isso, como dizem alguns, é coisa de Deus, exige vingança contra Deus.
(*) Marco Lacerda é jornalista e escritor, autor dos livros As flores do jardim da nossa casa, Favela High-Tech e Clube dos homens bonitos. É editor-especial do portal Dom Total.
Em Nazaré ou em Macondo onde surgirá um novo Gabo?