Quem se atreve a não declarar amor à multidão? Comunistas e fascistas amam a multidão unânime, estrondosa.
A democracia ama-lhe o glamour, o aveludado clamor à beira do tapete vermelho. O cinema alemão e o cinema soviético amaram a multidão, a sua coreografia. Amou-a Griffith, no cinema americano, em Birth of a Nation ou Intolerance. Mas já em 1928, no poético The Crowd, o individualista King Vidor confessava alguma amarga desconfiança.
Talvez os soviéticos, Eisenstein, também Pudovkine e o telúrico Dovjenko, tenham sido os campeões da multidão. Filmaram-na num movimento purificador, exaltado, revolucionário.
À estética do esplendoroso movimento da massa humana, que supostamente se desloca para um reino de superação da necessidade, quiseram fazer corresponder um elã ético. Manipularam. Isto é, e falo sobretudo do Eisenstein do Couraçado de Potemkin, de Outubro e da Greve, usaram todos os artifícios da montagem, em particular os radicais contrastes entre a ampla abertura dos planos gerais, mostrando a violência redentora do seu movimento, e o gigantismo do close up dos rostos em delírio, dos gritos heróicos.
Eisenstein não demoraria a desiludir-se. Alexandre Nevsky e, em particular, Ivan, o Terrível expõem uma desencantada estetização, uma multidão pela multidão que me atrevo a aproximar da que, numa estética kitsch, Cecil B. De Mille filmou em faraónicas concentrações.
Leni Riefenstahl filmou a multidão em O Triunfo da Vontade, encomenda de Hitler. O filme começa no céu, entre as nuvens. E é das nuvens que vemos uma Nuremberga que parece ser um cenário do Gabinete do Dr. Caligari. No chão, à espera, a multidão alemã, geométrica e expressionista. Filmando o passo de ganso dos SS, depois a exuberância de estandartes e suásticas, Riefenstahl funde o estádio e a parada, a torrente civil e o batalhão militar.
Troca-se a dialéctica soviética pela noite mística alemã, mas a manipulação da montagem persiste e há outro ponto comum. Subjacente a ambas as multidões está a mesma apologia, quase ingénua, do trabalhador musculoso, hercúleo, que prescinde de si mesmo para se dissolver, e ao seu trabalho, no colectivo. O sonho húmido da democracia de mercado era ter na cama este trabalhador sem direitos, devoto e franciscano.
Desde que, nos primeiros filmes, os irmãos Lumière a mostraram a sair das fábricas ou a encher a gare de uma estação de caminho-de-ferro, a multidão no cinema é um rio de energia. Pode ser também, se o poder estiver na ponta de uma câmara de filmar, um rio de violência.
Mesmo nos filmes mais cépticos, o cinema glorifica a multidão e redime a turba ululante. A vida é mais madrasta. Temo que hoje, quando a multidão é multidão, cave cada vez mais o doloroso caos, o seu inevitável empobrecimento.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
1.º de Maio é celebrado em plena liberdade nas ruas, pela primeira vez em muitos anos. Em Lisboa junta-se cerca de um milhão de pessoas.ver “enquadramento histórico” em Cravos de Abril, filme de Ricardo Costa.O cineasta documentarista alemão Horst Hano, que algum tempo depois daria larga cobertura à agonia do regime franquista.
A multidão inspiraria Chico Buarque de Holanda que poetizou a primavera de abril.
Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim
Inspiração que “Patriamada”, dirigido por Tizuka Yamasaki, é filme feito no calor da hora. A campanha das Diretas Já, que mobilizou multidões pelo Brasil afora em 1984 – o movimento começa no ano anterior – exigindo eleição democrática para presidente do Brasil, depois de duas décadas de ditadura militar.
O cinema registrou momentos históricos tendo como protagonista a multidão. A multidão filmada por Leni Riefenstahl em O Triunfo da Vontade, não tinha consiciência do seu papel cinematográfico, fôra usada miseravelmentee as cenas envergonham a juventude alemã. As cenas encomendas, fizeram parte de um roteiro e argumento, foram para numa moviola e redundaram numa montagem distorcente da verdade.
Com razão MS Fonseca:se o poder estiver na ponta de uma câmara de filmar, pode transformar a multidão num rio de violência.