Não existe esse troço de melhor filme de todos os tempos

Cidadão Kane é o melhor filme jamais feito. Durante meio século, essa verdade foi martelada na nossa cabeça. Recentemente, surgiu uma lista, vinda da Inglaterra, que subvertia essa verdade meio-secular: Um Corpo que Cai, sim, é o melhor filme que jamais foi feito.

Pois eu digo o seguinte: não existe esse negócio de melhor filme que já foi feito.

Isso é bobagem.

Melhor filme que já foi feito não existe. É invenção, ficção. É que nem Papai Noel. Igualinho a Saci Pererê.

Foi meu sobrinho Beto que provocou. Botou no Facebook que curte pequenas polêmicas. E, me chamando pra polêmica, afirmou que Blade Runner é o melhor filme de todos os tempos.

Não é. Nem Cidadão Kane, nem Vertigo, nem Blade Runner.

Nem Les Parapluies de Cherbourg, que algumas vezes na vida eu mesmo já disse que foi o melhor filme jamais feito. Que, aliás, uma vez entrou numa lista dos piores filmes jamais feitos, elaborada por Cora Rónai em O Globo.

Cora Rónai se espantou com a quantidade de gente que escreveu para ela indignada, em defesa de Parapluies. Uma semana ou duas depois de ter botado o filme de Jacques Demy na sua lista dos piores da história, teve que publicar que tinha ficado espantada com a paixão e entusiasmo dos muitos e muitos apaixonados pelo filme. Prometeu revê-lo.

O caso ilustra bem o que pretendo dizer. Que não existe esse troço de melhor filme que já foi feito.

***

Qualquer lista de melhor filme segundo a opinião de mais de uma pessoa, que tente balancear diversas opiniões, ser o máximo divisor comum, o mínimo múltiplo comum, é uma bobagem. Uma besteira imensa.

De melhor filme ou de qualquer outra coisa. Fico no quesito filme porque foi aí que o Beto me provocou, mas poderia ser música, disco, livro, quadro, gol, time, o escambau.

Lista de melhores é coisa boa de marketing. Dá leitura. Todo mundo quer ler, comentar, meter o pau – às vezes até elogiar.

Ser bom de marketing não significa que seja válido, sério, importante. Basta ver o PT: excelente de marketing, neca de pitibiriba de fatos, de realidade.

Todo mundo adora uma lista de melhores. Todo mundo adora Papai Noel, Saci Pererê.

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Pensemos, por exemplo, no Oscar, o prêmio de maior marketing do planeta. Os caras botam lá cinco filmes disputando uma determinada categoria. Uma banana, uma maçã, uma pera, um abacaxi, uma melancia.

Como é possível dizer que, entre uma banana, uma maçã, uma pera, um abacaxi, uma melancia, um seja melhor que o outro?

Toda lista de candidatos a um prêmio de melhor filme é uma mistura indigesta de alhos com bugalhos.

De melhor filme, melhor livro, melhor música.

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Como dizer, por exemplo, se “Sabiá” é melhor ou pior que “Caminhando”?

Não dá pra misturar alhos com bugalhos só porque o determinado alho participou de um concurso com determinado bugalho.

Ao final de Anos Rebeldes, Gilberto Braga colocou o personagem que era o sujeito politizado, anti-ditadura, reconhecendo que, na verdade, na verdade, ao contrário do que ele havia achado na época, passado tudo, passados a ditadura, o AI-5, a tortura, “Sabiá” era, de fato, melhor que “Caminhando”.

Foi uma bela sacada dramática, romancesca, do grande Gilberto Braga. Como sacada dramática, romanesca, foi brilhante.

Mas espelha a verdade dos fatos?

Sei lá.

Vaiada naquele 1968 pré-AI5 por mais de 20 mil pessoas que estavam ali no Maracanãzinho para transformar a final do festival num evento político contra a ditadura, “Sabiá” é uma canção extraordinariamente bela. Das mais belas que há. É só ouvir qualquer uma das diversas gravações da música, de Nara Leão a Frank Sinatra. (O YouTube tem uma fascinante montagem de cenas do Maracanãzinho em 1968, com Tom e Chico enfrentando aplausos no meio de vaias da maioria que preferia “Caminhando”, e depois uma gravação dos anos 80, no teatro da Rede Globo, com Tom ao piano e Chico cantando junto com um coro feminino à la Quarteto em Cy, e tendo ao lado Caetano como tiete.)

Dizia-se na época, e se disse bastante depois da época, que “Caminhando” era uma pobre canção de dois acordes.

Não sei se “Caminhando” tem um, dois ou três acordes. Mas sempre que ouço a canção de Vandré, seja na acústica versão em estúdio, seja na gravada no Maracanãzinho, seja na que Simone teve a coragem de fazer antes que os generais saíssem do Palácio do Planalto pelos fundos, seja na estonteantemente fascinante versão em italiano cantada por Sergio Endrigo ou na perfeita versão em espanhol cantada por Ana Belén, me emociono.

Ao contrário dos personagens de Gilberto Braga, não sei qual é a melhor, se “Sabiá”, se “Caminhando”.

Não sei se “Disparada” é melhor que “A Banda” – ou vice-versa.

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Já fui chiquista contra caetanistas, já fui caetanista contra chiquistas.

Já fui lennonista de carteirinha, virei macartnista desde todo o sempre.

Hoje, velhinho, tenho, como tive nos períodos mais sãos da vida, imenso e igualitário respeito por Chico, Caetano, Lennon, McCartney.

E acho que Vandré estava certíssimo quando disse a frase definitiva: “A vida não se resume a festivais”.

A vida não se resume a festivais.

Lista de melhores é bom pra vender jornal, chamar clique na internet.

Mas é a mais pura besteira que possa haver.

Ah, sim: Cidadão Kane, Vertigo, Blade Runner, Les Parapluies de Cherbourg são, eles todos, belíssimos filmes.

Mas não dá pra dizer se um é melhor que outro, porque um é laranja, o outro é limão, o outro é melancia.

Cada pessoa tem sua fruta preferida.

Ou, como já se dizia muito antes de o cinema existir: gosto é gosto, e gosto não se discute.

E além do mais, como me lembra aqui a Mary, a gente tem todo o direito de gostar de várias frutas.

Outubro de 2012

8 Comentários para “Não existe esse troço de melhor filme de todos os tempos”

  1. Sérgio, discutia isso com um amigo ontem mesmo, no facebook.

    Tb não acho que exista “melhor” filme, no máximo o filme preferido – e mesmo isso seria um problema pra mim, mudaria com frequencia… um mês The Apartment, outro Janela Indiscreta, outro O Sétimo Selo, no outro Cidadão Kane, depois Annie Hall ou Laranja Mecânica e por ai vai…

    Woody Allen comentou sobre isso de melhor filme de maneira brilhante após ganhar o Oscar por Annie Hall – quando foi tocar clarinete ao invés de ir à premiação. Simplesmente diz que não acha possível definir um melhor filme, que poderiam dizer “meu filme favorito é Annie Hall”, mas nunca que é o melhor. Diz ainda que dizer que é o melhor só é possível no atletismo, onde você consegue ver quem chega primeiro, ehehehehehe.

    Segue o link com essa reportagem e a entrevista no final: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=SAVxp9GtuvM

    PS: Mesmo que houvesse um melhor filme, certamente, certamente não seria Blade Runner…

    Abraço!

  2. Sérgio, auspiciosa volta. Muito bom ler você, muito melhor que o racionarismo do Sardenberg. O Beto é de outra geração, posterior a nossa. Bons filmes boas lembraças, eu da minha parte fico com Cidadão Kane a Blade Runner que não figura na minha lista, apesar dos dois filmes, cada qual em sua época retratarem realidade e ficção. Bons filmes. Você tem razão, cada qual faz sua salada de frutas, eu entre bananas e laranjas fico com Blow-up.Legal que na sua salada você citou Vandré, Chico, Caetano, Lennon e McCartney. Eu vaiei Sabiá, me arrependo, uma linda canção. Mas Disparada ainda me emociona, tal como a você. Ali no Maracanãzinho a música do Vandré me fez enxergar os anos de chumbo. Dali em diante ajudei a fundar o PT. Desacertos políticos à parte hoje estou com Mary “a gente tem todo o direito de gostar de várias frutas”.
    Continue assim,neste ritmo, produzindo textos,idéias, comentários.
    Abraço.
    Milton

  3. Ainda bem que o “virei macarthista desde todo o sempre” se refere ao Paul e não ao sinistro senador Joseph McCarthy”.

  4. Adoro a canção “Caminhando” do Vandré mas acho que nunca ouvi essa de “Sabiá”. Daria para postar no Facebook?

  5. Servaz: o melhor de tudo é saber que o melhor filme pode ainda nem ter sido feito…

  6. Felizmente. O termo utilizado deveria ter sido mcCartneysta e não macarthista. Um “H” faz a diferença. As frutas se diferenciam pelo mel e pelo fel.

  7. Querido Sérgio,
    Que delícia de argumento. Adorei também o do Rafael e concordo com o Woody Allen. O Beto realmente conseguiu criar polêmica depois de algumas cutucadas.
    Beijos e até,
    De

  8. Agradeço, até emocionado, devo confessar, pelos comentários a um textinho tão desleixado, despreocupado, despretensioso.
    Graças a vocês, Luiz Carlos e Miltinho, pude corrigir o erro absurdo: claro que mccarthista não é o adjetivo apropriado para quem admira McCartney, e não o infame caçador de bruxas do período negro da história americana.
    E, amigo Rato, você tem toda razão: era necessário fazer link para as duas canções, “Caminhando” e “Sabiá”. Estão lá os links. Tenho a certeza de você vai gostar de “Sabiá”.
    Obrigado a todos.
    Sérgio

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