A luva branca

Usava luvas. E, filho de mãe de ori­gem fran­cesa, uma desi­lu­dida ben­gala aris­to­crá­tica. Escre­via tão bem como se ves­tia. Uma ele­gân­cia cép­tica em cada frase. Um ela­bo­rado ritmo des­cri­tivo que sugere acção e intriga onde acção e intriga quase não exis­tem. É pre­ciso talento. E com­bi­nar bem tumul­tu­o­sos subs­tan­ti­vos com dis­cre­tos adjectivos.

Dashi­ell Ham­mett cres­ceu em Fila­dél­fia e Bal­ti­more e foi detec­tive pri­vado na agên­cia Pin­ker­ton até des­co­brir a luz per­pé­tua da escrita. O rea­li­za­dor John Hus­ton, que o conhe­ceu em Hollywood e lhe adap­tou The Mal­tese Fal­con, diz que desen­ca­de­ava motins. Entrava num bar, nas­cia uma con­versa à volta dele e, de repente, explo­dia um con­flito, uma faca já na mão de um dos con­ten­do­res. Ham­mett ia-se então embora, imper­tur­bá­vel, pas­se­ando as luvas e a ben­gala pelo meio da con­fu­são sem que nin­guém lhe tocasse.

Há nos seus livros a mesma caó­tica exci­ta­ção. Per­passa nos seus poli­ci­ais a mesma som­bria e imper­tur­bá­vel solidão.

Em tem­pos de Proi­bi­ção, deu uma festa num caba­ret clan­des­tino de Hollywood. Tocava uma banda de jazz e quando já se tinha bebido tudo, Ham­mett con­vi­dou os músi­cos a con­ti­nuar a fun­ção na suite que reser­vara no mítico Knic­ker­bo­ker de L.A. Às três da manhã, a música fazia dan­çar as pare­des finas do hotel. Vie­ram bater vio­len­ta­mente ao quarto. Ham­mett levantou-se, uma gar­rafa na mão, e foi ver quem era. Abriu a porta e fechou-a três segun­dos depois. Do lado de fora já nem um pio. O omni­pre­sente Hus­ton ficou intri­gado. Como é que Ham­mett con­ven­cera em segun­dos o que ima­gi­nou ser um gerente recal­ci­trante. Foi ver. No cor­re­dor estava um homem esten­dido ao com­prido. Ham­met não o dei­xara dizer uma pala­vra e dera-lhe em cheio na cabeça com a gar­rafa que supo­nho de whisky.

É esse véu de cinismo e desen­canto que Hus­ton repro­duz em The Mal­tese Fal­con. O filme tem um clima único: um tom negro que entra pelos olhos den­tro. Hus­ton, com a ajuda do seu direc­tor de foto­gra­fia, e este com a ajuda de novas pelí­cu­las e novas câma­ras, inven­tou um estilo e um género: o film noir. Tive­ram sorte: Bogart, actor de uma soberba inér­cia, era a incar­na­ção per­feita do herói triste e per­dido de Hammett.

Anos depois, leva­ram o ele­gante escri­tor de poli­ci­ais a tri­bu­nal. Acusavam-no de acti­vi­da­des anti-americanas. Era o tempo em que ao sonho ame­ri­cano se colava o circo do sena­dor McCarthy. Ham­mett sentou-se na sala de audi­ên­cias, olhou, ouviu e deixou-se ficar calado. Um juiz advertiu-o: “Se não res­pon­der às per­gun­tas condeno-o por des­res­peito ao tri­bu­nal.” Só falou dessa vez: “Não tenho pala­vras para des­cre­ver o des­res­peito que tenho a este tribunal!”

Não é uma res­posta, é uma luva branca. A única luva que Bogart, o Bogart de The Mal­tese Fal­con, não se impor­ta­ria de ter calçado.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia. 

Um comentário para “A luva branca”

  1. Ler o portuga MSFonseca é conhecer a história do cinema, e reviver nos atores, diretores, personagens, uma época magnífica na qual os filmes mostravam uma realidade social. Hoje ficção e ação tomaram o lugar nas telas. Mais efeitos e menos roteiros levaram o Spilberg a abandonar a genialidade de “Encurralado” para dirigir produzir trilers de gosto duvidoso.
    Do Além Tejo ao Tras os Montes bem vindo Fonseca.

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