Estive na mansão de Hugh Heffner. Em Beverly Hills, colinas e floresta à volta, tocava-se jazz, playmates vestidinhas, sauna escavada na rocha, um jardim zoológico de araras, mirrados macacos, coelhos e suponho que coelhinhas, uns despardalados pink flamingos.
Mas nem um chimpanzé. Corre um riacho pela propriedade, há uma escadaria que tomara Odessa, mas não há um chimpanzé. Ora, no bairro de Luanda onde cresci, inter-racial de abrir a moscas a boca de Mademoiselle Le Pen e interclassista de abananar um sindicalista casmurro, havia um chimpanzé. Vivia no relvado duma vivenda, sem dramas, percalços, uma variação de humor que fosse. Se o atazanava alguma inconfessada curiosidade, nem às paredes a confessou: uma reserva de Charlton Heston no Planet of the Apes.
Um improvável acto de Deus escancarou um dia o portão da rua. O chimpanzé fugiu. Desceu a rua, balançando-se pelo sossego das dez da manhã, mais juvenil do que Cary Grant e Marilyn depois de beberem a poção que a chimpanzé Esther inventa no Monkey Business de Hawks.
Ouviu-se o primeiro grito, um miúdo que à janela espairecia o paludismo que não o deixara ir à escola. Atrás do grito, uma lavadeira, um romântico suspiro de dona de casa, um mecânico saindo debaixo de um carro. Curiosa, juntou-se gente atrás do peludo mamífero, com a euforia de quem segue a banda do Chico Buarque. À prudente distância que vai do chimpanzé ao humano.
Eis que o chimpanzé acelera. À porta da mercearia do Sr. Amaral, no cruzamento da Almeida Garrett com a Fernando Pessoa, essas grandes figuras da literatura angolana, estacionava uma carrinha cheia de garrafas de um certo, estranhável, refrigerante. O carregador, ao ver a milenar selva a correr aos urros, ala que se faz tarde, pulou. Subia o chimpanzé para a carrinha abandonada e já o apavorado merceeiro corria os portais, trancando-se com os clientes lá dentro. Parecia começar na minha rua outro filme de Hawks, o Bringing Up Baby, na cena em que entra na sala o leopardo chamado Baby. O chimpanzé agarrou numa das 200 garrafas da carrinha, partiu o gargalo desse prodígio de curvas e design na carroceria e bebeu sôfrego. Era a sua primeira Coca-Cola. Ali, em plena Rua Fernando Pessoa, o chimpanzé não estranhou. Partiu o gargalo da segunda e bebeu. E da terceira e quarta. Era uma esponja a entranhar coca-colas, o beiço a sangrar dos gargalos mal partidos.
Cansado do cativeiro lusotropical, o bicho deliciava-se com o imperialismo americano. Com a sociedade do espectáculo também: a carrinha era o palco e o povo à distância, uh-uh, batia no peito e dava saltos bizarros, eu próprio no galho de uma mangueira. Uma hora de orgia a que o dardo entorpecente de uma espingarda pôs fim. Com um discreto arroto, adormeceu feliz o primeiro chimpanzé que vi beber Coca-Cola.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Simplesmente precioso. Como, de resto, todos os textos que aqui vejo de Manoel S. Fonseca.
O texto me pareceu uma pequena metáfora dos tentáculos imperialistas sobre a cultura de Angola e Brasil. As culturas foram obviamente engarrafadas em frascos cheio de curvas. Passamos a beber o líquido negro do imperialismo através de filmes e textos. Afinal colonizados e catequisadosa a distância, num galho de mangueira, batiamos no peito, aha, uhu, tal como num filme de Van Dyke,Tarzan o filho das selvas.