Faz poucos dias fiz rápida viagem à ilha na foz do rio Amazonas onde mantenho um franciscano tugúrio. Fui apenas acariciar as paredes da casinha, beijar os seculares troncos da floresta, pilastras da catedral do verde, e juntar folhas secas no chão para esfregar em minha pobre cabeça na esperança de que restos de seiva me alcançassem a alma. Na verdade a grande magia do lugar é que ali posso passar anos e anos seguidos, ou anos e anos interrompidos por ausências, que sempre, ao chegar, descubro lances novos. E o fantástico charme disso é que mesmo coisas já vistas e apreciadas se recriam. O que acaba por me dar a impressão de que exercito convivência com o reciclar do eterno.
Um desses casos envolve as roseiras. Já ao desembarcar na prainha as avisto num canteiro ao lado da escada de acesso ao casebre. Detecto logo as carícias das atenções de seu Pluéricles, o caseiro, que trata do jardim com desvelo de operário padrão e delicadezas de mãos de fada. Antes mesmo de ser tomado pela álacre vermelhidão das pétalas robustas, me chama atenção o verdor das folhas. Diante de enormes rosas abertas à meiga brisa do pleno verão amazônico e botões prontos à explosão da cor, pergunto ao bom homem que cuida de tudo na minha ausência qual a arte para manter o roseiral tão lindo.
– Apenas fiz uma experiência que deu certo – me diz, meio misterioso.
Daí contou que um sabiá que levei para a ilha no ano passado construiu ninho numa das árvores do entorno. Depois que os filhotinhos cresceram o suficiente e se foram para a floresta, Pluéricles pegou os gravetos, triturou e colocou nos pés das roseiras. Para ampliar a experiência catou outros ninhos em desuso de suis, pipiras, bem-te-vis, tem-tem etc. e fez o mesmo.
– O resultado aí está – o caseiro apontou. – Nunca as rosas brotaram tão bonitas.
Olho em volta no instante de maré alta a bater nos barrancos, e penso como é bom, num momento em que tanto se discute a preservação da Amazônia, estar ali. Cercado por uma vegetação absolutamente íntegra, nunca mexida desde que o primeiro aluvião começou a formar a ilha. É como se eu pudesse conter, nas mãos em concha, um pequeno pedaço do começo do mundo. Que em muitos lugares a oeste e ao sul da região amazônica sofrem ante as fúrias dos blairo magis da vida…
À tarde, para avivar o cheiro da terra, das folhas, das flores e dos troncos, cai uma chuvarada de celebração do verão em curso. Um daqueles aguaceiros benfazejos que limpam o céu para anunciar as vésperas da lua.
A noite, nesta época do ano, se espalha com mansidão de “moderato cantabile”. Colocado no colorido tênue que tinge as poucas nuvens no horizonte da Baía do Marajó, com a faixa de terra do outro lado tão distante que não se consegue vê-la. Mas a renovação do já tantas vezes testemunhado a que me refiro acima começa a ser formatada no justo instante em que pinta a primeira estrela. Aquela que conduz a vontade dos desejos terrenos para o alavancar das possibilidades que apenas os deuses detêm.
Fale a verdade, amigo, quanto tempo faz que você não olha para um céu estrelado? E do que adiantaria voltar os olhos para o alto na cidade, onde as luzes das casas, dos carros e dos postes ofuscam os pinguinhos que cintilam no além? O silêncio de um anoitecer na ilha é particularmente montado sobre a essência do rumor do vento do rio a passar entre as folhas. E se, embaixo, a escuridão propicia o mover das sombras, é bem acima que a total e grande noite se faz. Avistam-se tantas estrelas na abóbada que nos cobre na foz do rio Amazonas, a ponto de a própria silhueta da Via Láctea aparecer como o misterioso espreguiçar de uma névoa sobre aquilo que, afinal, deve ser o infinito. Pelas 10 horas da noite, despencam sobre mim todas as estrelas que permeiam os anos-luz. A floresta íntegra acolhe os rastros dos astros cadentes, o que me remete a um mundo em princípio. Que fará doer mais, no dia seguinte, a realidade de que, na verdade, ele pode estar no fim.
Esta crônica foi publicada no Correio Popular, de Campinas.