O vinho desce suavemente pela garganta e a voz de Alaíde Costa inebria mais que o álcool. Os dois, delicadamente, vêm me aquecer nesta noite de inverno. Se bem que nem inverno oficial é, mas o que o corpo sente e o termômetro indica me faz prever que o frio veio para ficar.
Lá fora, pouca gente circula. Só alguns que descem apressados dos ônibus e se dirigem para casa, cansados do dia de trabalho e ansiosos para um banho e uma sopa quentes, quem sabe um carinho prolongado do parceiro. A vida deveria ser amar, mas antes é preciso trabalhar. E o brasileiro, em geral, não foge ao compromisso de prover a família. Mas a provisão de que necessita a prole e a parceria é muito mais que pão e teto. Fomos feitos para amar, para sermos felizes e isto é mais do qualquer obrigação. É direito e a ele não podemos renunciar.
Mas que felicidade posso imaginar que exista na vida dessa mulher carregada de sacolas, equilibrando a bolsa de dinheiro e documentos, que segue pela rua sem mostrar nenhum charme? Seu passo é resoluto mas ela não balança como todas as mulheres balançam, principalmente as brasileiras. O ofício do dia e o vento que bate em seu rosto afastam qualquer possibilidade de exibição para quem a observa da janela de um segundo andar.
O rapaz sim, esse sobe assobiando e fumando um cigarro, não sei se o legal, vai pela noite ao encontro de amigos ou da namorada. O motociclista acorda os bebês e inviabiliza, com a descarga da moto aberta, que os vizinhos possam ouvir o que dizem os personagens da novela. O silêncio não condiz com sua intrepidez não civilizada. Ao longe, foguetes comemoram gols de um jogo imaginário. Ou será homenagem a um santo, todo dia é dia de santo em nossa terra?
Por algum tempo concebi a hipótese de que a evolução da tecnologia faria com que as pessoas não precisassem sair de seu aconchego , enfrentar o trânsito a cada dia mais caótico, para trabalhar. De casa mesmo quase tudo poderia ser feito. E que se trabalhasse menos. Ao contrário, trabalha-se muito mais. As empresas parecem ser devoradoras do sangue e do suor de seus funcionários. Querem, vampiras, sempre mais. A modernidade e suas máquinas, feitas para facilitar a nossa vida, ainda não nos dispensam do burocrático, demorado e cansativo, ir e vir diário da casa para o trabalho e vice-versa, essa longa jornada que entristece os lares e mata aos poucos como veneno no feijão.
Alguns conseguiram essa libertação. Mas o direito de ser feliz – de trabalhar somente o necessário e ter todo o tempo do mundo para amar os que nos cercam, acolher e cuidar deles e gozar até a última dose da vida- essa é a verdadeira distribuição de riqueza a ser feita. Por esse ideal, levanto faixas e faço manifesto. Evoé.
Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em junho de 2012.