Resolvi fatiar o dia com uma pequena sesta antes do anoitecer. Certas tardes exigem um reforço de sono, para que a mente descanse e as energias da criação possam ser ativadas.
Acordo em meio a notícias sobre os problemas criados para a população com a greve de ônibus, que deve ser justa mas pune injustamente os que dependem do transporte coletivo para trabalhar, estudar e circular com conforto pelas ruas da cidade. Os que não têm carro nem outra opção, pois o metrô, prometido há mais de trinta anos, não avança por mais que seja necessário, essencial, indispensável.
O telefone toca e meu amigo me consulta sobre um livro passarinheiro que anda construindo. Quer aportuguesar a palavra “loop” do inglês. Respondo argumentando sobre o fato de que se tantos usam o inglês para expressar o que poderia ser dito em bom português não há nenhum impedimento se adaptarmos para a língua pátria o idioma gringo. É o que mais se faz por aí. No momento em que publicar que as andorinhas fazem um “lupe” rasante, ele estará se antecipando aos dicionários e introduzindo um novo termo que logo estará na boca do povo, que o adotará.
Foi o que aconteceu com uma canção minha e do Milton Nascimento. Estávamos nos Estados Unidos e ele iria gravar um disco. Para contar a história de um amigo músico que conhecera lá, ele começou a escrever uma letra em inglês e me chamou para que a terminássemos juntos. Era um caso, comum na vida de todos nós, de encontros e desencontros. Um se vai, o outro fica. Quando o primeiro volta, o outro já se foi. Porque você também deixou a cidade, meu amigo?
Feita a letra, e terminada a melodia e a harmonia, fomos mostrar a nossa cria, que já tinha um nome: “Unencounter”. Os letristas americanos que a ouviam logo argumentavam que aquela palavra não existia em inglês. Foram dizer isso logo para mim que, depois da segunda dose, improvisava na língua deles, dando terminações inglesas para vocábulos latinos. Eles se admiravam: você diz que não fala inglês mas emprega palavras eruditas.
Juntamos, eu e o Milton, a partícula negativa “un” ao termo “encounter”, encontro.
Perguntávamos se eles entendiam o que queríamos dizer, eles assentiam. E se há encontro, como não existe desencontro? Que país é este em que o encontrar é eterno e não há nunca o desencontrar? Naqueles tempos nem me lembrei do verso de Vinícius: “ a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro nesta vida.”
Se eles entendiam o que queríamos dizer e se era nosso desejo, introduzimos, com a gravação do disco Journey to dawn, a palavra “unencounter” no idioma deles.
Em português, nossa cria veio a se chamar “Canção da América”, canto à amizade que resiste ao tempo, à distância e às intempéries.
Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em março de 2012.