Se o erotismo é uma forma de aristocracia, então Anatole Dauman é um príncipe da Renascença. Há duas décadas entrevistei-o neste jornal que ainda tem paciência de me acolher.
Dauman fora o prestigiado produtor de Hiroshima, mon amour de Alain Resnais, da perturbadora Mouchette de Robert Bresson, do sexuado Masculin, Féminin de Godard, das Asas do Desejo do sorumbático Wenders, para ir a jogo só com ases.
Conversámos no histórico Avenida Palace. Assentava-lhe bem a nostalgia do cenário. Vestia-se com elegância de faubourg Saint-Honoré, segurando um copo de vinho como se fosse um ceptro de imperador. Falava devagar, procurando as palavras por disciplinado amor à retórica e para se consolar com o som do que dizia. Pensei: há seres humanos que têm no narcisismo a maior virtude.
Parte eslavo, parte judeu, francês de cérebro, Dauman era sempre estrangeiro e no fio da navalha. Os filmes que produziu situam-se nos limites de amor e morte que, cúmplices, roçam já pelo crime.
Começo por Nuit et Brouillard, de Resnais. A noite e o nevoeiro desse filme, que faz da escuridão humana e das cinzas dela a sua matéria, leva-nos aos campos de concentração, 10 anos depois do genocídio. Filma-se a paisagem bucólica de Auschwitz, a rasteira vegetação que cresce, o parvo sol distraindo-se por um fio de estrada: nem gritos, nem sangue, nem as cinzas de um osso ou da carne que já foi um braço, o ansioso seio do amor. Nada, ninguém, diria de forma mais horrenda a inutilidade do crime nazi do que a silenciosa amoralidade da natureza. Os carris sem uso, outrora de nocturno vómito, cães e medo, estão agora cobertos de ervas sopradas pela indolente brisa do Verão. Dizem que a Natureza tem horror ao vazio, mas o que ali se vê é o horror a um humano que a Natureza se obstina a apagar depressa.
Outro filme, de extremo horror do humano ao humano, foi o Império dos Sentidos. Dauman pediu ao realizador, o japonês Oshima, uma “tourada de amor”. Com sangue, vermelhíssimos quimonos, uma faca e uma estocada de morte.
Nessa história de ilimitada paixão entre uma criada de hotel e o dono dele, os amantes atacam o corpo um do outro como um exército um território ou o canibal a sua presa: atacam a boca, o sexo, a menstruação, o estrangulável pescoço. “O que sentes?” perguntam. E quando sussurram “não te posso ver sofrer!” é só para ir mais longe, buscar a inenarrável alegria da dor. Nesse filme, que tanto ensinou ao Arcebispo de Braga quando o programei na RTP 2, amor rima com morte, sexo com sangue.
Ascese, protestava Dauman, sentado na nobre decadência do Avenida Palace. A ascese de Van Gogh foi a de cortar a própria orelha. A dos amantes do Império dos Sentidos culmina na sufocada morte e no corte cerce desse apêndice que num homem é o ramo e os seus frutos.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
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Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia