entramos.
quer subir pra dormir?
quero dormir ali, onde estava o vovô.
deito-o e o cubro. um beijo na testa.
já é outro ano, filho.
témanhã, pai.
está tudo bem?
sim. pelo menos eu conheci o vovô. mas parece que alguma coisa dói dentro de mim.
outro beijo.
venha pro meu colo, digo, sentando-me. ele se aconchega e eu canto, baixinho, sem violão, a canção que compus um dia para ninar toda gente:
.
dorme, dorme, mãe,
dorme no meu braço;
dorme que eu velo
pelo teu cansaço.
.
dorme, dorme, pai,
dorme em minha mão;
dorme que eu vigio
tua aflição.
.
dorme, dorme, amigo,
dorme em meu calor;
dorme que eu mitigo
um pouco tua dor.
.
dorme, companheira,
em minha constância;
dorme que eu corrijo
a nossa distância.
.
dorme, dorme, filho,
no meu coração;
dorme que eu te quero
mais que filho, irmão.
.
dorme, dorme, ausente,
em qualquer cidade;
dorme que eu te acordo
com minha saudade.
.
dorme, meu amor,
no meu abandono,
dorme e me carrega
dentro do teu sono.
.
quando sinto que ele dorme, ajeito-o sobre as almofadas, cubro-o e me levanto. acendo o lampião. o saco de viagem de meu pai está sobre a mesa. parece vazio. quando o pego, olhando distraído para o espelho, percebo que o morceguinho desceu novamente até o presépio.
a vida adorando o mito!
e as vozes maravilhosas de Monteverdi esbanjando estrelas sonoras no seu Magnificat…
enfio a mão no saco de viagem e tiro um pequeno bloco de papel.
o morceguinho começou a voar pela sala. coloco o lampião perto das almofadas, sobre uma banqueta. ajeito-me e me cubro, encostando-me aos pés do menino. o morceguinho vai e volta em seus vôos de linhas quebradas. curvo-me e, sem me levantar, abro a porta. ele ainda vem e vai mas num repente se dirige à porta e desaparece.
adeus, criaturinha da vida.
não o reverei jamais.
começo a leitura.
A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.
Para ler a partir do capítulo O.
Continua na semana que vem.