Não serve à democracia uma nação de servos felizes

“No despotismo iluminado de ontem e de hoje, a figura do homem servo, mas feliz, substitui aquela que nos é familiar através da tradição do pensamento grego e cristão do homem inquieto, mas livre. Qual das duas formas de convivência está destinada a prevalecer no futuro próximo ninguém está em condições de prever”. 

Vamos trazer essa inquietação do grande Norberto Bobbio até o cenário de nosso cotidiano político. E pensar: com um governo popular, incensado e eufórico como aquele que Lula comanda hoje, estamos destinados ao servilismo feliz?

Um dos dilemas da democracia moderna é como lidar com as situações extremas de populismo político, onde os índices de aprovação popular de um governo podem ser confundidos com uma licença para esmagar as forças que por alguma razão se opõem a ele. É consenso na ciência política que o exercício da democracia pressupõe que a garantia dos direitos da minoria seja tão sagrado quanto a satisfação das aspirações da maioria.

Os governos aprovados pela opinião pública – e mais ainda os incensados – tendem a atrair apoios como a luz atrai as mariposas. Quando o apoio se torna incondicional e acrítico corre o risco de transformar-se em vaga irracional sob a qual fica difícil separar euforia de desatino.

O fenômeno provocado pela extraordinária aprovação popular ao governo Lula, que em algumas regiões do País beira a unanimidade, tem como efeito colateral não apenas o exercício de uma soberba que beira a arrogância, mas tem também o efeito pouco salutar de paralisar qualquer ação legítima que a oposição possa querer assumir, no exercício de suas prerrogativas democráticas. Em outras palavras, a oposição deixa de se opor, não apenas por falta de idéias, mas acima de tudo pelo medo de desagradar aos 80% que apóiam o governo.

O quanto isso possa ser prejudicial à democracia só conseguiremos saber ao longo do tempo. Mas não é difícil imaginar. Não se constroem democracias sadias com consensos falsos forjados pelo medo. Durante o período da ditadura militar, na época eufórica do ‘ame-o ou deixe-o’, não era só a repressão que paralisava a contestação aos dogmas do regime militar. O regime tinha, inequivocamente, principalmente nos anos iniciais, um forte apoio popular. Só se opunham a ele os segmentos mais politizados da população, ou por militância esquerdista ou por legítima aversão às práticas autoritárias e antidemocráticas. Por um período, principalmente o período de maior bonança econômica, ‘o homem servo mas feliz’ de Bobbio era a imensa maioria.O general Médici fazia embaixadas com a bola e era aplaudido enquanto os opositores eram calados à força.

Esse efeito colateral da democracia de massas, evidentemente, não é tão nocivo como a ditadura escancarada, e expõe, no nosso caso, muito mais a imaturidade e a inconsistência ideológica e programática dos partidos políticos e das lideranças que os compõem do que falhas estruturais do processo democrático de escolha e de alternância de poder.

Uma oposição que se esgueira pelas sombras e foge de suas responsabilidades, dedicando todas as suas atenções ao tabuleiro de xadrez eleitoral, na esperança de que os votos não sejam hereditários, sem oferecer alternativas consistentes ao destempero populista, é de pouca ou nenhuma ajuda no processo que leva ao amadurecimento de nossa democracia.

Não serve à democracia uma nação de servos felizes.

Texto publicado no jornal Brasil Econômico, em novembro de 2009.

2 Comentários para “Não serve à democracia uma nação de servos felizes”

  1. Quando o governo opta pelo paternalismo somos fadados a ter um povo perdulário e massa de manobras.

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