“Rua Nascimento e Silva, 107. eu saio correndo do pivete”…
Avenida General Olímpio da Silveira, eu saio correndo do motoquete…
Vinha plácido e faceiro como em anúncio de bonde, descera do meu metrô e subira as escadas, saíra na praça, atravessara sob o Minhocão e caminhava para o meu destino, quando dou de cara com a moto.
Eu ia, o cara vinha. Muito trânsito na avenida, achou mais fácil andar pela calçada. Simples. Subiu, e acelerou, sem se preocupar com aqueles obstáculos de carne e osso se movendo por ali, coisa irritante. Quando veio para cima de mim, fiquei imóvel como um obelisco. Acho que ele pensou que eu fosse desviar. Como não fiz, parou. Isso me livrou do atropelamento. Pôs um pé no chão, executou uma manobra esquisita, que me tirou da mira, e saiu de novo na correria, o tarado.
Isso foi há uns três meses. Um pouco depois, em Guarulhos, vou atravessar uma praça. Tomo o cuidado de caminhar até a faixa de pedestre, em uma das esquinas. Longa espera. O homenzinho verde do sinal brilha para mim, indicando que era minha vez. Na rua, esquina da praça, o trânsito parado no vermelho. Ônibus, muito ônibus, carros…
Inicio a travessia, de olho na esquina. Não vá um motoqueiro… Veio. Dobrou a esquina, avançou pela faixa, tirou uma fina da minha ilustre pessoa… O cidadão bem comportado, irritado com a selvageria do outro, reclama como um babaca, apontando para o homenzinho verde: “Olha o sinal aberto”!
O que aconteceu? O sujeito me olhou feio, não gostou nada de eu ter saído do papel de trouxa passivo que me destinou. Pareceu ofendido, desacatado em seu direito. Mas não perdeu mais tempo, acelerou e sumiu-se.
É bom ser motoqueiro em São Paulo, em Guarulhos. A categoria está isenta de respeitar o Código Nacional de Trânsito. Os “cachorros-loucos”, como os mais bravios são chamados por eles próprios, destacam-se nesse liberou geral. Mesmo entre os mais santos, sempre há uma conversão proibida a ser feita, limite de velocidade a ser desrespeitado, um farolzinho vermelho varado aqui e ali.
Em Guarulhos, há um farol especialmente chato, que fecha em sincronismo com outro. Este abre, mas quem vira à direita, numa avenida de duas pistas, dá com o outro fechado. É um farol para pedestres. Outro dia, cheguei e parei. Por acaso, vinham atrás de mim várias motos. Todas vararam no vermelho, como se não existisse farol, nem faixa.
Lembrei de uma definição que escrevi, certa vez: “Faixa de pedestre: bandagem com que são envolvidas, no pronto-socorro, as fraturas dos que acharam seguro atravessar a rua no lugar destinado a eles”.
Uma notinha
Os mais jovens talvez não saibam ao que Valdir Sanches se refere quando fala da Rua Nascimento e Silva, 107.
“Rua Nascimento e Silva, 107, você ensinando pra Elizeth as canções do amor demais.”
Em 1958, quando ainda não existia o termo “bossa nova” para designar um tipo de música, Elizeth Cardoso – cantora já consagradíssima, grande estrela da música brasileira – gravou um LP para o pequeno selo Festa (mas uai, os discos independentes não surgiram não foi muito depois disso?) com 12 canções recém-criadas pela então nova dupla Antônio Carlos Jobim-Vinicius de Moraes. O LP chamou-se Canção do Amor Demais. Em duas das faixas, um jovem baiano praticamente desconhecido tocava violão – um tal de João Gilberto.
A letra inteira de “Carta ao Tom”, escrita por Vinicius de Moraes com música de Toquinho, vai aí abaixo.
“Como se o amor doesse em paz.” Que maravilha de verso. E pensar que Toquinho costumava ser chamado de Troquinho.
Que Toquinho tenha muito menos reconhecimento do que merece é uma prova de que este país é muito doido.
Carta ao Tom
Rua Nascimento e Silva, 107
Você ensinando pra Elizete
As canções de Canção do Amor Demais
Lembra que tempo feliz
Ah, que saudade
Ipanema era só felicidade
Era como se o amor doesse em paz
Nossa famosa garota nem sabia
A que ponto a cidade turvaria
Esse Rio de amor que se perdeu
Mesmo a tristeza da gente era mais bela
E além disso se via da janela
Um cantinho de céu e o Redentor
É, meu amigo, só resta uma certeza
É preciso acabar com essa tristeza
E preciso inventar de novo o amor
Grande gozador, o maestro homenageado na canção criou depois mais uma estrofe ironizando as modernidades introduzidas na paisagem carioca. A ironia de Tom está no final do ótimo clip no youtube, que reúne a letra original cantada por Vinicius e Toquinho e algumas paisagens estonteantes do Rio. Eis o acréscimo feito por Tom, que Valdir citou na abertura de seu texto:
Rua Nascimento e Silva, 107
Eu saio correndo do pivete
tentando alcançar o elevador.
Minha janela não passa de um quadrado,a gente só vê cimento armado
onde antes se via o Redentor.
Ah, meu amigo, só resta uma certeza,
é preciso acabar com a natureza,
é melhor lotear o nosso amor.
(Sérgio Vaz)