Olho pela janela, tudo bem, nem tanta nuvem assim, só quatro quadras, vou rapidinho, dá tempo.
Confiro a lista – banana, laranja, abacate, tomate, rúcula, gengibre, leite, café, lá eu vejo o resto –, pego a bolsa, fecho a porta, chamo o elevador, volto, o guarda-chuva estava ficando.
Oitavo andar, elevador vazio, pouca gente na rua, deve ser a hora, quase três, todo mundo almoçado e voltando pro trabalho.
Nem bem atravesso a primeira esquina, o vento me pega. E os primeiros pingos.
Tento abrir o guarda-chuva. Desses pequenos, precários. Bobagem ter voltado pra buscá-lo. Bobagem maior tê-lo comprado.
Óculos embaçados, água jorrando, piso – sem querer – em folhas de alface sobradas da feira livre, hoje foi dia, pô, por que não fiquei em casa?
Na quarta esquina, rapidinho só quatro quadras, lá está ele, o supermercado. Porta cheia de gente, sair como?
Cabelos, roupas e tênis encharcados, impossível não me lembrar do médico, proibido molhar o curativo do dedo do pé, quebrado há pouco tempo. Sinto muito, doutor.
Busco laranjas, gengibre, ah, não posso me esquecer do que tive preguiça de colocar na lista.
Sem pressa, coisa que não consigo ter, fico um bom tempo por lá, resolvendo a vida e ouvindo a chuva, fiel, presente, constante.
Enquanto pago, penso que seria bom se me entregassem em casa, como fazem com as compras.
Em casa, a empregada que, há quarenta anos, vejo se escandalizar com tudo, até com o cotidiano mais cotidiano, não se contém:
– Coitada!
Debaixo do chuveiro, banho quente, água limpa, sabonete perfumado, impossível não me lembrar dos coitados que, nos últimos dias, traídos por geografias, morros, rios, políticos, enxurradas, lamas, pedras, sonhos e ilusões, choram pelos cantos, aglomeram-se pelos abrigos, perambulam pelas encostas, vagueiam pelos vales.
Errantes, procuram por pedaços de famílias, escombros de lares, resquícios de vida. Restos do que talvez nem tenha restado. Restos de nada.
Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprograma.