“And high up above my eyes could clearly see / the Statue of Liberty / Sailing away to sea”.
Tradução perde demais, demais – mas é tipo “E lá do alto meus olhos podiam claramente ver a Estátua de Liberdade navegando embora pelo mar”.
“American Tune” é uma das mais belas, e também mais tristes, das canções deste gênio maior que é Paul Simon. Ele a gravou originalmente no álbum There Goes Rhymin’ Simon, seu segundo disco solo, de 1973 – e é interessante, eu penso agora, meio século e um ano depois, como aquele disco tinha canções alegres. Muitas canções alegres demais para um compositor tão sério, tão dado a temas pesados, profundos.
Estão ali as deliciosas, quase até mesmo dançantes “Kodachrome”, “Take me to the Mardi Grass”, “Was a Sunny Day”, “Loves Me Like a Rock” – e, no meio delas, essa coisa tão absolutamente triste, nostálgica, desesperançada, “American Tune”.
Ele a cantou nos shows que fez a partir do lançamento do álbum, e “American Tune” esteve também no seu terceiro disco solo, o Paul Simon in Concert – Live Rhymin’, de 1974. Claro que ela estava na setlist do Concert in Central Park de Simon and Garfunkel de 1981, embora naquela época a gente não usasse o termo setlist. Teve um cover extraordinário de Willie Nelson, esse caubói texano que representa todos os valores corretos que importam na vida. Eva Cassidy, essa pérola de cantora que passou como um cometa por aqui, fez uma gravação de emocionar frade de pedra. Elvis Costello, as Indigo Girls, um monte de gente boa também gravou.
A íntegra do poema – a palavra é esta mesma –, com toda sua beleza lancinante, vai mais abaixo. Tento aqui fazer um resumo – mesmo sabendo, claro, que se perde demais na tradução, traduttore traditore.
O narrador diz que muitas vezes esteve errado, muitas vezes confuso, frequentemente se sentindo esquecido, mal compreendido. “Mas está tudo bem, está tudo bem, só estou exausto até os ossos.”
E conta de um sonho. “Sonhei que eu estava morrendo. Sonhei que minha alma se levantou inesperadamente e, olhando de volta para mim, sorriu de uma forma reconfortante. E sonhei que estava voando e lá do alto meus olhos podiam claramente ver a Estátua da Liberdade navegando embora pelo mar”.
A letra, perdão, o poema é rico, complexo. Fala que parecia que as coisas iam bem, mas de repente tudo tinha dado errado – e ele, o narrador, se perguntava onde será que todos tinham se perdido. Que ele não conhece uma única alma que não tenha sido espancada, não conhece um amigo que se sinta à vontade, não conhece um sonho que não tenha sido estilhaçado.
Como é uma “American Tune”, uma canção americana, ele faz um zoom para focalizar o país de longe, visto do espaço sideral, lembra que eles, os americanos, vieram num navio chamado Mayflower – o navio icônico, emblemático, que transportou os primeiros peregrinos da Inglaterra para o então Novo Mundo, os primeiros imigrantes. Que vieram numa nave espacial que foi até a Lua. Que vieram nas horas mais incertas.
***
Ao ver nesta semana as diversas artes, desenhos, ilustrações com a Estátua da Liberdade, a canção emblemática de Paul Simon ficou pairando na minha cabeça.
(A arte tem isso. A arte consegue trazer beleza até ao maior pesadelo da História da Humanidade desde o dia 30 de janeiro de 1933.)
Todas as ilustrações são tristíssimas, é claro.
A Liberdade se equilibra na corda bamba, na capa da New Yorker, quando ainda havia esperança de que ela não caísse. “Viver é andar na corda bamba. O resto é esperar”, diz Joe Giddeon, o alter ego de Bob Fosse, em All That Jazz (1979). Liberdade tensa, nervosa, fumando loucamente, como um pai na maternidade à espera de notícias da mulher naqueles tempos em que se fumava loucamente. Liberdade chorando copiosamente. Liberdade sendo abusada pelo conhecido predador sexual.
Mas talvez a mais absurda, a mais desesperançada das ilustrações seja essa da Dame Liberty sailing away to sea.
Dame Liberty indo embora do lugar que já havia sido a Terra Prometida, a terra em que corriam rios de leite e mel, a terra da fartura – Wim Wenders fez uma beleza de filme com esse título, Land of Plenty, em 2004. A Terra do Sonho Distante, o título brasileiro do America America do imigrante Elia Kazan.
Dame Liberty indo embora da terra que para tantos milhões de pessoas foi a terra da esperança – porque agora não há mais esperança ali.
O que se espera agora é um tempo de ódio, perseguição, terror.
Um tempo de adeus a todos os valores corretos, a tudo de bom que a humanidade conseguiu criar.
Meu Deus do céu e também da Terra. Nem na hora mais incerta de que fala a canção de Paul Simon a gente poderia imaginar que veríamos tamanho horror.
***
Paul Simon
Many’s the time I’ve been mistaken
And many times confused
Yes, and I’ve often felt forsaken
And certainly misused
Oh, but I’m alright, I’m alright
I’m just weary to my bones
Still, you don’t expect to be bright and bon vivant
So far away from home, so far away from home
And I don’t know a soul who’s not been battered
I don’t have a friend who feels at ease
I don’t know a dream that’s not been shattered
Or driven to its knees
But it’s alright, it’s alright
For we lived so well so long
Still, when I think of the
Road we’re traveling on
I wonder what’s gone wrong
I can’t help it, I wonder what has gone wrong
And I dreamed I was dying
I dreamed that my soul rose unexpectedly
And looking back down at me
Smiled reassuringly
And I dreamed I was flying
And high up above my eyes could clearly see
The Statue of Liberty
Sailing away to sea
And I dreamed I was flying
We come on the ship they call The Mayflower
We come on the ship that sailed the moon
We come in the age’s most uncertain hours
And sing an American tune
Oh, and it’s alright, it’s alright, it’s alright
You can’t be forever blessed
Still, tomorrow’s going to be another working day
And I’m trying to get some rest
That’s all I’m trying to get some rest,
8 e 9/11/2024