Esquerda paga o preço de não ter se renovado

Fracassou a estratégia de Lula de fazer da eleição municipal a antessala da disputa presidencial de 2026.

Em especial, o presidente pretendia que a eleição paulistana fosse o principal teatro de operações na disputa com seu antecessor, Jair Bolsonaro, e de quebra criar um cinturão vermelho sobre a capital paulista, com a vitória nas cidades ao seu redor, especialmente em seu berço político, a região do ABC. A vitória em São Bernardo, de onde se projetou para o Brasil como líder sindicalista, era uma questão de honra.

Nada disso aconteceu. Sob todos os ângulos, a esquerda foi a grande derrotada na disputa municipal. O mapa político do Brasil pós primeiro turno acompanhou a tendência que vem desde 2016, inclinando-se para o centro e para a direita. O predomínio é de centro-direita, o grande vencedor do último domingo, embora também tenha se expandido a ala ideológica que orbita em torno de Bolsonaro. Isso se traduziu em números.

Os partidos mais conservadores ligados ao ex-presidente – PP, PL e Republicanos- elegeram 30% das prefeituras. Já os partidos do campo da esquerda – PT, PSOL, PSB, PDT, PC do B, mesmo com Guilherme Boulos no segundo turno – controlarão, no máximo, 13% das prefeituras do país. O PSD de Gilberto Kassab vai se afirmando como o grande partido municipalista, com uma fatia mais gorda de prefeituras: 16% do total.

E no cesto das prefeituras controladas pela esquerda está computado PSB de João Campos, prefeito reeleito de Recife com votação expressiva, que pouco tem a ver com a esquerda tradicional. Ele e Tabata Amaral estão mais para um centro-esquerda arejado e refratário à polarização.

Há um dado espantoso. Em São Paulo, o Partido dos Trabalhadores elegeu no primeiro turno míseros três prefeitos, nos municípios de Lucianópolis, Matão e Santa Lúcia. Disputará o segundo turno em mais dois: Mauá e Diadema, no ABC, onde já controla suas prefeituras. No mais, toda a região metropolitana de São Paulo estará em mãos de aliados de Tarcísio de Freitas. O governador paulista foi o principal vitorioso no Estado, sendo decisivo para Ricardo Nunes (MDB) ser o mais votado na capital.

A eleição ainda não terminou. Para um balanço final é necessário o desfecho do segundo turno. Na capital paulista, o candidato da esquerda, o psolista Boulos, carrega enorme desvantagem. No primeiro turno, os votos dos três candidatos mais à direita – Nunes, Marçal e Marina Helena – chegaram a quase 60%. É quase impossível os votos de Marçal, que não foi para o segundo turno por um triz, migrar para o candidato de Lula.

O PT disputará a segunda etapa apenas em quatro capitais. Em uma delas, Porto Alegre, para cumprir tabela. O atual prefeito, Sebastião Melo, do MDB, só não se reelegeu por diminutos 0,28%, pois teve 49,72% dos votos no primeiro turno. De quebra, a esquerda viu o bolsonarismo fincar suas estacas no Nordeste, até então um reduto inexpugnável do lulismo, passando para o segundo turno em João Pessoa, Natal e Fortaleza.

Como cabo eleitoral, Bolsonaro colheu mais frutos do que Lula. Catapultou ainda as candidaturas de Bruno Engler em Belo Horizonte, Fred Rodrigues em Goiânia e de Cristina Graem, em Curitiba. O PL de Bolsonaro e Valdemar Costa Neto levou nove candidatos a prefeito para o segundo turno, o dobro do que o PT disputará.

Leituras cor de rosa de lideranças do PT e de membros do governo tendem a dourar a pílula, minimizando o tamanho da derrota.  O auto engano é livre. Amargarão novas derrotas se não mergulharem nas causas reais da hecatombe eleitoral do primeiro turno. Elas apontam para questões de fundo não levadas em conta na disputa.

Houve um erro estratégico de Lula, claro, ao apostar no aprofundamento da polarização com Bolsonaro para conquistar casamatas, com vistas à disputa presidencial de 2026. Nem em São Paulo isto aconteceu, pois o grande cabo eleitoral foi o governador Tarcísio. A polarização, ao contrário da avaliação do presidente, deu sinais de arrefecimento. Mas há causas mais profundas também subestimadas pelo presidente e seu partido.

A esquerda lulista não renovou suas lideranças. Em São Paulo sua face mais visível na eleição é Marta Suplicy, que foi prefeita há 20 anos! O mesmo se pode dizer de sua bancada de parlamentares. A alternativa a Lula é o próprio Lula, pois seu partido não tem outra liderança forte para disputar 2026. Enquanto no campo da direita é possível citar vários nomes em condições de disputar a próxima eleição presidencial.

Esse é o paradoxo: enquanto a esquerda se desconectou da juventude, a extrema-direita se aproximou dela com garra. O vereador mais votado do Brasil foi um bolsonarista de 26 anos, Lucas Pavanato, de São Paulo. Fenômeno semelhante aconteceu na eleição de 2022, quando o deputado mais votado foi também um jovem de 26 anos, o mineiro e bolsonarista Nikolas Ferreira. Sintoma dos tempos atuais: em vez da estrela no peito, os jovens preferiram fazer o M nas urnas.

Lula e o PT ainda raciocinam como se vivêssemos no mundo fabril da sua época de sindicalistas. O discurso de Mano Brown de 2018, em um comício da campanha de Haddad, já advertia para o descolamento do PT, que “não falava a língua do povo”. Na época foi vaiado por petistas.

De lá para cá o problema só se agravou. As urnas revelaram a profunda distância da esquerda da sociedade, incapaz de entender os novos fenômenos e dialogar com amplos setores, como a enorme massa de trabalhadores em áreas sem vínculo empregatício, os evangélicos, os pequenos empreendedores, bem como com a aspiração da nova classe média e da juventude de prosperar.

Para a esquerda, o empreendedorismo é um valor neoliberal e se a Uber quiser sair do Brasil “é um problema da Uber”, como afirmou, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, um ex-sindicalista com a cabeça nos tempos da CLT de Getúlio Vargas. Marinho foi mais longe para enfrentar o problema da uberização da economia. Sugeriu aos Correios a criação de um aplicativo aos moldes da Uber, “para trabalhadores que desejam usar o aplicativo trabalhar sem a neura do lucro dos capitalistas”. Só faltava mesmo essa, a esquerda propor a Uberbras!

Já a direita se conecta com tais setores. A votação em São Paulo, onde Marçal conquistou 28% dos votos, é expressão da capacidade da direita, mesmo o seu setor mais radical, de dialogar com a nova realidade, fruto da profunda revolução tecnológica.

E a esquerda, o que tem a dizer para esses setores? Quase nada. Daí, ao ser penalizada pelas urnas, pagou o preço de não ter se renovado.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 9/10/2024. 

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