Faltavam duas semanas para o segundo turno da eleição presidencial de 2002 quando a coluna de Elio Gaspari veio com uma informação surpreendente: “Se Lula vencer a eleição, seu governo terá começado na tarde de terça-feira, numa sala do Hotel Sofitel, em São Paulo, quando ele sentou-se com Delfim Neto”.
A aproximação entre os dois representava uma repaginação dupla. Lula, deixava de ser o candidato radical das campanhas passadas para assumir o compromisso, por meio da “Carta aos Brasileiros”, de respeitar contratos. Havia uma pitada de Delfim na guinada de Lula.
E Delfim Neto, ao se aproximar da esquerda, se reinventava. Deixava de ser o maior inimigo dos sindicalistas, responsável pelas perdas inflacionárias que turbinaram as greves do final dos anos 70, no ABC paulista. Passava a ser conselheiro informal de Lula, em uma aproximação costurada por Antonio Palocci. Nessa condição, foi constantemente procurado, nos dois primeiros governos de Lula, a quem deu vários conselhos.
Um deles, encampado por Palocci, foi o do governo ter como meta o déficit nominal zero. A ideia não vingou em função das resistências do PT e do próprio Lula. Se tivesse sido ouvido, talvez a dívida pública no Brasil não seria hoje essa grande bomba de efeito retardado.
Sem dúvida, a aproximação do czar do milagre econômico dos tempos da ditadura com a esquerda representou uma queda de tabus. Afinal de contas, Delfim foi cossignatário do AI-5 e, na intervenção que fez na reunião do Conselho ministerial de 13 de dezembro de 1968, sugeriu ao então presidente Arthur da Costa e Silva aproveitar a oportunidade para ampliar seus poderes: “Estou plenamente de acordo com a proposição (o AI-5) que está sendo analisada no Conselho. E se Vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela não é suficiente. Eu acredito que deveríamos atentar e dar a Vossa Excelência a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o desenvolvimento com maior rapidez”.
Essa passagem manchou sua brilhante biografia até o fim da vida. Décadas depois, quando indagado sobre as torturas nos anos de chumbo, declarou: “Uma vez perguntei a Médici se havia tortura. Ele me disse que não. Nós ouvimos, como todos, coisas daqui e dali. Eu acreditei nele.”
Sem sombra de dúvidas. Delfim foi um dos ministros da economia mais fortes da história da República. Durante sete anos, nos governos de Costa e Silva e de Emílio Garrastazu Médici, a economia bombou, chegando a crescer 14% em 1973, último ano do “milagre econômico”. Durante o seu reinado a economia cresceu em média 10,16% ao ano.
Viviam-se então os tempos de vacas gordas, turbinados pela fartura do crédito internacional e pela abundância de petróleo a preços baixos. Vem daí o financiamento de um modelo pautado no intervencionismo estatal, na realização de grandes obras públicas e no crescimento do mercado interno via expansão do crediário. Havia a percepção de que todos estavam ganhando com o milagre econômico, embora, como, reconheceu o próprio Czar do milagre, “uns mais e outros menos”.
O Brasil crescia, mas a esquerda não admitia isso. Não percebia que as camadas populares também se beneficiavam, tendo acesso, via crediário, a bens de consumo sofisticados, como eletrodomésticos. Mas o modelo era concentrador de renda. Delfim definiu bem qual era a filosofia de sua política econômica: “Primeiro é preciso fazer o bolo crescer, para depois dividir”. Ao longo de sua vida, jurou várias vezes não ter dito a sua frase mais famosa. Pouco adiantou as negativas. A história o registra como o pai da criança.
O Brasil ia pra frente, como alardeava a propaganda do regime militar. E, como sempre, a propaganda maquiava a realidade. Com a imprensa submetida a censura e o parlamento garroteado, o pai do milagre econômico podia fazer suas mágicas. Uma delas, a da falsificação dos índices da inflação. Seu sucessor, Mário Henrique Simonsen, dizia que a inflação declarada nos tempos de Delfim era falsa, “mostrava os índices de um congelamento imposto pelo ministro, que não eram seguidos pelo mercado”.
O próprio Czar viria a confessar os coelhos que tirava da cartola para manter a inflação oficial com índices baixos. Em 11 de novembro de 2001 o jornal O Globo publicou: “Delfim diz que manipulou a inflação em 1973”. Segundo a reportagem, Delfim admitia que conseguia conter os índices da inflação aumentando a oferta de alimentos no Rio de Janeiro, única cidade onde a FGV apurava os preços no varejo.
O milagre econômico tinha seus pés de barro e eles vieram à tona no advento da primeira crise mundial do petróleo, em 1973. A fonte internacional para os investimentos internos começou a secar e duas bombas de efeito retardado estouraram dez anos depois: a dívida externa galopante e a hiperinflação. As raízes da década perdida dos anos 80 estão lá atrás, nos tempos da ditadura militar e seu milagre econômico. Por causa da herança maldita, o então presidente José Sarney decretou moratória da dívida externa e o Brasil passou por sucessivos planos econômicos heterodoxos, até conquistar a estabilidade da inflação com o Plano Real.
Delfim Neto sempre foi um desenvolvimentista, adepto da intervenção estatal na economia. Isto explica em muito sua aproximação com o governo Lula. Durante os governos da ditadura militar foram criadas 274 empresas estatais, boa parte delas nos sete anos de Delfim como ministro da economia. Em agosto de 1968, criou a Comissão Interministerial de Preços, cujo objetivo era garantir que os preços dos produtos estivessem de acordo com a política econômica do governo. A lei da oferta e da procura foi substituída pela intervenção estatal. O governo tinha um poderoso instrumento para fazer valer as determinações do CIP. Quem não as cumprisse não teria acesso ao crédito do sistema de financiamento público.
Não se pode fazer uma leitura maniqueísta de uma figura tão complexa como Delfim Neto. Suas qualidades e suas contribuições são reconhecidas por economistas das mais diversas correntes. Não gratuitamente, diversos governos de matizes diferentes buscaram seus conselhos. Delfim reciclou-se, submeteu-se ao jogo da democracia e da política, sendo deputado por cinco mandatos e constituinte de 1988.
Além de economista e político, Delfim Netto foi um grande professor universitário. Considerado um dos mais ilustres professores do departamento de Economia da Faculdade de Economia e Administração da USP, lecionou por vários anos na instituição, onde foi professor titular de análise macroeconômica e, mais tarde, após sua aposentadoria, tornou-se professor emérito. Apaixonado pela escola, onde era idolatrado por alunos, em 2014, doou à FEAUSP todo seu acervo particular, composto de mais de 100 mil livros e 90 mil revistas. Também foi feita a doação de seu mobiliário, de forma a criar um espaço que reproduzisse sua sala de leitura. Na Universidade de São Paulo tinha um grupo de leais seguidores que o acompanhavam na política e nos cargos que ocupou.
Frasista da melhor qualidade, destacava-se por sua ironia fina e sua mente arguta. Era dado a fazer previsões. Muitas, acertou como quando criticou a âncora cambial no início do Plano Real: “A âncora cambial é um remédio que mata a fome, mas que no final mata o paciente”.
Noutras errou feio, como no caso do próprio Plano Real a quem vaticinou: “não dura quatro meses.”
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 14/8/2024.