A ninguém minimamente responsável interessa o enfraquecimento de um ministro da Fazenda. Quando isso ocorre sempre gera instabilidade ou deságua em crises mais profundas. Nesse sentido, são bem-vindos os movimentos de blindagem do ministro Fernando Haddad, cuja imagem vinha se desgastando por uma série de fatores. Entre eles o fogo amigo do próprio governo e do PT, a devolução, pelo presidente do Senado, da Medida Provisória de restrição de créditos tributários do PIS e Confins, além da mudança, para pior, do humor do empresariado, por desconfiar do compromisso do governo com o equilíbrio das contas públicas.
O impacto da pior semana de Haddad – e do governo – em um ano e meio do terceiro mandato de Lula se fez sentir com rapidez. Uma onda de pessimismo se espalhou entre os agentes econômicos. O dólar chegou a bater em R$ 5,43 acumulando, em 2024, uma valorização de 10%, enquanto a bolsa brasileira e nossa moeda estão entre os piores desempenhos no ano em curso.
Nesse quadro, disseminou-se no mundo dos negócios o receio de Haddad jogar a toalha ou de continuar no cargo sem força, quase como um pato manco. Nessas condições, o país estaria contratando uma crise gravíssima, até porque a alternativa a Haddad poderia representar um novo cavalo de pau na economia.
Lideranças do mundo empresarial, como o presidente da Federação Brasileira de Bancos, Isaac Sidney, sentiram o calibre do perigo, passando a engrossar a rede de proteção ao ministro. Ironia das ironias: a Febraban assume a defesa do ministro enquanto o Partido dos Trabalhadores divulga uma nota chamando de “artificial” a crise fiscal e se posicionando contrário aos cortes cogitados, num claro trabalho para minar a autoridade do ministro da Fazenda.
A blindagem de Haddad capitaneada pelo empresariado é positiva por evitar um agravamento da deterioração dos indicadores em uma conjuntura internacional que não é de céu de brigadeiro. O ministro tomou uma injeção de ânimo, acenando com uma mudança de rota. Em dobradinha com Simone Tebet, anunciou uma “revisão dos gastos ampla, geral e irrestrita”. Na mesma linha, a ministra do Planejamento diz existir uma “avenida para cortes de gastos”, que pode chegar “à aposentadoria dos militares”.
O anúncio é bem-vindo. Até agora a âncora do arcabouço fiscal se deu pelo aumento da receita para se alcançar as metas fiscais que, diga-se de passagem, têm sido frustradas. Essa via esgotou-se, colapsou. Não há espaço para o aumento da carga tributária e da receita. O episódio da devolução da MP do PIS/Confins é produto desse esgotamento.
Há, contudo, o risco da avenida apontada por Simone se transformar em uma viela se não forem afastados determinados obstáculos a um corte de gastos “amplo, geral e irrestrito”. Primeiro, é preciso arbitrar o conflito no interior do governo, dividido em uma ala, chamemos assim, “fiscalista” representada por Haddad e Simone, e outra “desenvolvimentista”, também chamada de “turma do acarajé’, liderada pelo baiano Rui Costa, ministro-chefe da Casa Civil.
Aqui surge o primeiro grande complicador. A cabeça e o coração de Lula pendem para o lado da expansão dos gastos. Sucessivas vezes o presidente tem dado declarações na linha “gasto é investimento” e de pouco compromisso com a responsabilidade fiscal. E Lula já jogou um balde de água fria nas intenções da equipe econômica ao repetir a cantilena populista de que não fará ajustes para “cima dos pobres”. Descartou ainda a idéia de Haddad e Simone de limitação do aumento dos gastos com a educação e a saúde, posição também firmada pela nota do PT, divulgada nesta segunda.
É previsível uma reação dos setores que se sentirem contrariados por um ajuste fiscal profundo, como chegou a anunciar Simone Tebet: “nada está interditado, a não ser a valorização do salário mínimo e a desvinculação das aposentadorias (do salário mínimo).”
Mesmo preservando essas duas questões, não deixa de ser ousada a intenção de mexer na aposentadoria dos militares, na desvinculação orçamentária das verbas destinadas à educação e à saúde e em outros benefícios previdenciários, como Benefício de Prestação Continuada, Seguro-Desemprego e Auxílio Saúde. Sem dúvida essas medidas contrariam interesses de vastos setores da sociedade, afetando a vida de muitos brasileiros. Haverá reação de quem se sentir prejudicado, algumas delas por motivos legítimos, outras ditadas pelo peso do corporativo incrustado no Estado e na sociedade.
Para ter um mínimo de viabilidade, um corte de tamanha extensão requer a unidade do governo em torno de sua necessidade e implementação. Em especial, que seja assumido e apoiado fortemente pelo presidente da República.
Essa coesão de propósitos simplesmente inexiste no governo e em sua base. A “oposição interna” às idéias de Haddad não é de hoje. Sua política já foi carimbada pelo PT como “austericídio fiscal”. O fogo amigo não decorre apenas de visões diferentes sobre a política econômica. Em parte, é decorrente do fato de Haddad ser apontado como herdeiro político de Lula e potencial candidato a presidente, no futuro. Esse status é cobiçado por outros petistas e membros do governo.
O ministro é, portanto, alvo de uma coligação de interesses contrários ao ajuste fiscal pelo lado do corte das despesas. Sem o apoio do presidente, a mudança de rota proposta pode ficar no campo das boas intenções, com Lula fazendo um corte cosmético, sem resultados reais no equilíbrio das contas públicas.
O presidente sinalizou sua pretensão ao pedir, na reunião do Comitê Orçamentário da última segunda-feira, que os cortes estruturais fiquem para 2025. Agora seriam realizados “os mais rápidos e mais fáceis.” Essa estratégia causou frustrações, com o dólar disparando e a bolsa despencando.
É uma incógnita qual seria a estratégia de Haddad para o day after na hipótese de um simulacro de ajuste. No sábado, o ministro disse uma frase enigmática: “A sala de aula está sempre ali para mim. Posso voltar para ela em um ano, dois anos ou dez anos. Voltar para a sala de aula é voltar para casa”.
O tom nostálgico de sua frase parece ser decorrente de outra afirmação sua: “O Brasil é um encrenca”. A frase é injusta com o país. A encrenca é o governo.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 19/6/2024.