Passados os dias santos cristãos, o Congresso retoma a votação do Projeto de Emenda Constitucional, PEC 5/23, que amplia a imunidade tributária dos templos. Mesmo mais brando do que o original, o texto final exigiu recuo do governo Lula quanto à isenção fiscal das igrejas, e negociações para excluir benefícios adicionais e estabelecer um teto para a cobrança de impostos de pastores, a serem fixados por lei complementar. A matéria inclui todas as matizes religiosas e deve ser aprovada sem sustos, com apoio à direita e à esquerda, do governo e da oposição, e até de ateus.
Com 228 integrantes – 202 deputados federais e 26 senadores -, a Frente Parlamentar Evangélica, dominada por bolsonaristas, tem força para causar estragos ao governo. Segundo levantamento do Poder360, nada menos do que 104 deputados e 15 senadores desse grupo estão fechados com o ex. Há 76 deputados e 7 senadores evangélicos que se dizem independentes, e os demais 22 deputados e 4 senadores da FPE apoiam o presidente Lula.
Ainda que ideologicamente mais à direita, a Frente, como se vê, está longe de ser um núcleo coeso. Por lá as disputas são acirradíssimas. Segundo Carô Evangelista, cientista política e diretora do Iser, ela reflete a heterogeneidade das próprias representações evangélicas, que têm “DNA de capilaridade e de descentralização”. Em entrevista ao Meio Político, publicada na quarta-feira, 27, ela analisa as dificuldades do governo Lula – e da esquerda em geral – com esse segmento. “O apoio a Lula no passado foi pragmático. A adesão ao bolsonarismo, não. Foi um casamento.” Ela coloca a fé como ponto central de diálogo com o público evangélico e traz dados pouco conhecidos da maioria: dos 30% que se declararam evangélicos no Censo de 2010 (a atualização de 2022 ainda não foi divulgada), 29% eram das Assembleias e apenas 4% da Universal. A maioria frequentava igrejas pequenas, próximas de suas casas, e mudava muito de uma para outra.
Lula experimenta resistência dos evangélicos desde a campanha eleitoral. Na verdade, pouco mudou de lá para cá. Se a reprovação do governo entre eles subiu de 38% em dezembro do ano passado para 43% agora em março, como registra o último Datafolha, ela era de 41% em setembro. O ótimo/bom variou menos ainda, de 26% nas duas últimas pesquisas para 25% agora. A explicação talvez esteja no “casamento” dos evangélicos com o bolsonarismo. O bolsonarista evangélico que achava o governo ruim agora acha um pouco pior e o lulista que achava ótimo se mantém.
Isso coloca em cheque o tipo de negociação que o governo faz. Dificilmente os agrados à bancada evangélica se refletirão na simpatia dos fiéis. Conceder regalias fiscais não mudará o tom de pastores influencers do tipo Silas Malafaia, com 8 milhões de seguidores nas redes sociais, ou Claúdio Duarte, com seus 6,7 milhões. Eles vão continuar a descer a lenha em Lula e dar corda ao ex. Uma coisa são as lideranças, outra são os liderados.
Demonstra ainda que o governo não sabe como atacar a queda de popularidade, que está longe de se restringir aos evangélicos, espraiando-se para áreas onde Lula já nadou de braçada, como pobres, mulheres e Nordeste.
Especificamente para os evangélicos, Lula não conseguiu formatar nem mesmo um discurso básico de valores humanitários, que poderia, por exemplo, reduzir o apoio dos fiéis às armas. De quebra, deveria apoiar as milhares de obras sociais mantidas pelas igrejas e, pelo menos, tentar evitar o coro preconceituoso da esquerda contra os evangélicos.
O Brasil é uma república laica que sempre colocou Deus no meio. A proteção de Deus está no preâmbulo da Constituição e há crucifixos pregados nas paredes dos gabinetes oficiais. O ex Jair Bolsonaro enfiou Deus em seu slogan e sua esposa não se acanha em pregar o Estado religioso em comícios – “fomos negligentes ao não misturar religião e política e o mal tomou espaço”. Quase todos os presidentes pós-redemocratização cederam aos chefes evangélicos – alguns deles donos de prósperos templos-empresas. São privilegiados que não pagam impostos, não pagam IPTU, não pagam IPVA de seus carros de luxo, não pagam ICMS da conta de luz. Lula era exceção. Agora, capitulou. Assim, ajuda a ampliar o poder dos que se enriquecem à custa da crença de milhões de brasileiros.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 31/3/2024.