Demorei seis anos para saber que Nelsinho Motta havia feito uma versão de “Que reste-t-il de nos amours?”, essa maravilha que é seguramente uma das mais belas pérolas da chanson française, que Charles Trenet e Léo Chauliac escreveram provavelmente em 1942.
Digo provavelmente porque pode talvez ter sido em 1940, ou 1941. Não encontrei registro do ano exato em que o diamante foi lapidado por seus autores. O que se sabe com certeza é que a canção foi lançada em um 78 rpm da Columbia em 1942 por Lucienne Boyer; em fevereiro de 1943, Roland Gerbeau lançou sua versão, numa bolachona dura da Polydor. Só em julho daquele ano saiu a versão do próprio Trenet, para a Columbia.
Não sabia exatamente quem havia feito o que, se a letra era de Trenet e a melodia de Chauliac. Aprendi agora, dois dias depois de ouvir, maravilhado, Maria Bethânia cantar “Eu te desejo amor”, que a letra é só de Trenet, enquanto a melodia é dos dois parceiros. É um tanto estranho, isso, a melodia assinada por uma dupla, mas é o que está registrado.
Também não havia nunca pensado nessa coisa maluca que é a canção ter sido escrita – e gravada pelas primeiras vezes – na França ocupada pelos nazistas. Que horror, que pesadelo! Difícil imaginar que algo tão belo, tão poético, tão suave, tão amoroso, possa ter sido criado enquanto a França vivia embaixo das botas dos soldados invasores.
Credo: soldados, botas… Pensar nisso leva necessariamente ao que acontece no Brasil neste momento, mas, não, pelo amor de Deus, isso aqui é um suelto sobre uma das mais belas canções que já foram feitas! Pare com isso, Sérgio Vaz!
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Eu falei que Nelsinho Motta fez uma versão de “Que reste-t-il de nos amours?”, mas isso é falso. Fake news, que nem as que os bols…
Pare com isso, Sérgio Vaz!
Perdão. O que eu dizia é que “Eu te desejo amor”, que ouvi pela primeira vez duas noites atrás, zapeando pelo YouTube – uma beleza de interpretação de Bethânia, no show Abraçar e Agradecer, de 2016, que acompanhava o lançamento do álbum duplo de mesmo nome, da Biscoito Fino –, não é a versão de “Que reste-t-il de nos amours?”, e sim a versão de “I Wish You Love”. O título já demonstra isso – é a tradução literal de “I Wish You Love”. Que, por sua vez, é a versão americana de “Que reste-t-il de nos amours?”. Que não tem nada, mas nada, nadinda, neca de pitibiribas da letra de Charles Trenet.
“I Wish You Love” é uma letra de autoria de Albert Askew Beach (1924-1997). E é lindíssima, é uma absoluta maravilha. Só não tem nada a ver com a letra original. Nada, mas nada, nadinda, neca de pitibiribas. (Aqui, “I Wish You Love” com Frank Sinatra.)
Não vai aqui, de forma alguma, qualquer tipo de crítica ao compositor e letrista americano, nem ao escritor, letrista e jornalista brasileiro. Nenhuma reclamação, reprimenda, queixa. Estou apenas registrando fatos.
Nelsinho Motta fez com absoluta competência a versão para o português da bela letra de Albert Askew Beach, em cima da melodia de Charles Trenet e Léo Chauliac. Foi fiel a ela, e expressou em belos versos em português o que o americano bolou e escreveu. Algo comparável ao que Gilberto Gil fez, com maestria, com as letras de “No Woman, No Cry”, de Vincent Ford e Bob Marley, e de “I Just Called To Say I Love You”, de Stevie Wonder.
Autor de livros deliciosos, que a gente lê sem conseguir parar, Nelsinho é o cara que escreveu aquela letra que é das mais belas do tal do cancioneiro brasileiro, e é bom lembrar que o cancioneiro brasileiro é um dos melhores do mundo, se não o melhor:
Só quem partiu pode voltar
E eu voltei pra te contar
Dos caminhos onde andei
Fiz do riso amargo pranto
No olhar sempre os teus olhos
No peito aberto uma canção
Se eu pudesse de repente te mostrar meu coração
Saberias num momento quanta dor há dentro dele
Dor de amor quando não passa
É porque o amor valeu.
(Para quem não lembra, isso é um trecho de “De onde vens”, de Dori Caymmi e Nelson Motta, que teve uma bela gravação de Elis Regina e outra de Nara Leão em dueto com Edu Lobo.)
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Gostaria muito de falar de dois belos filmes em que têm importância “Que reste-t-il de nos amours?” e “I Wish You Love”, respectivamente Beijos Roubados/Baisers Volés e Terapia do Amor/Prime, porque cinema e canções sont des arts qui vont très bien ensemble, that go together well, como goiabada e queijo, feijão com arroz, mas acho que seria melhor botar logo as três letras aqui.
Então lá vai.
Que reste-t-il de nos amours?
(Charles Trenet-Léo Chauliac)
Ce soir le vent qui frappe á ma porte
Me parle des amours mortes
Devant le feu qui s’ éteint
Ce soir c’est une chanson d’ automne
Dans la maison qui frissonne
Et je pense aux jours lointains
Que reste-t-il de nos amours
Que reste-t-il de ces beaux jours
Une photo, vieille photo
De ma jeunesse
Que reste-t-il des billets doux
Des mois d’ avril, des rendez-vous
Un souvenir qui me poursuit
Sans cesse
Bonheur fané, cheveux au vent
Baisers volés, ráªves mouvants
Que reste-t-il de tout cela
Dites-le-moi
Un petit village, un vieux clocher
Un paysage si bien caché
Et dans un nuage le cher visage
De mon passé
Les mots les mots tendres qu’on murmure
Les caresses les plus pures
Les serments au fond des bois
Les fleurs qu’on retrouve dans un livre
Dont le parfum vous enivre
Se sont envolés pourquoi?
Que reste-t-il de nos amours
Que reste-t-il de ces beaux jours
Une photo, vieille photo
De ma jeunesse
Que reste-t-il des billets doux
Des mois d’ avril, des rendez-vous
Un souvenir qui me poursuit
Sans cesse
Mais ou menos assim:
Esta noite o vento batendo na minha porta me fala de amores mortos na frente do fogo que se apaga. Esta noite é uma canção de outono na casa tremendo e eu penso nos dias distantes…
O que resta dos nossos amores? O que resta daqueles belos dias? Uma foto, foto antiga da minha juventude. O que sobrou das notas de amor? Meses de abril, compromissos, uma lembrança que me assombra sem parar. Felicidade desbotada, cabelos ao vento, beijos roubados, sonhos em movimento. O que sobrou de tudo?, diga-me.
Uma pequena aldeia, uma antiga torre sineira, uma paisagem tão bem escondida e em uma nuvem o rosto querido do meu passado. As palavras, as palavras ternas que sussurramos, as carícias mais puras, os juramentos na floresta, s flores encontradas em um livro cujo perfume te embriaga.
Fugiu por quê? O que resta dos nossos amores? O que resta daqueles belos dias? Uma foto, foto antiga da minha juventude. O que sobrou das notas de amor? Meses de abril, compromissos, uma lembrança que me assombra sem parar.
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I Wish You Love
(Charles Trenet-Léo Chauliac, versão Albert Askew Beach)
I wish you bluebirds in the spring
To give your heart a song to sing
And then a kiss
But more than this
I wish you love
And in July a lemonade
To cool you in some leafy glade
I wish you health, and more than wealth
I wish you love
My breaking heart and I agree
That you and I could never be
So with my best, my very best
I set you free
I wish you shelter from the storm
A cozy fire to keep you warm
But most of all, when snowflakes fall
I wish you love
My breaking heart and I agree
That you and I could never be
So with my best, my very best
I set you free
I wish you shelter from the storm
A cozy fire to keep you warm
But most of all, when snowflakes fall
I wish you love
But most of all
When snowflakes fall
I wish you love…
Mais ou menos assim:
Te desejo passarinhos azuis na primavera pra dar ao seu coração uma canção para cantar. E então um beijo, mas mais que isso, te desejo amor.
E no verão uma limonada para te refescar em uma clareira frondosa. Te desejo saúde, e mais que riqueza, te desejo amor.
Meu coração partido e eu concordamos que você e eu não podia mesmo haver. E então, na maior, na minha melhor, deixo você livre.
Te desejo abrigo da tempestade, uma lareira confortável para te manter quentinha, mas sobretudo, quando a neve cair, te desejo amor.
***
Ah, meu… Que coisa linda, que coisa grande!
Cada vez mais me convenço de que as pessoas não se diferenciam umas das outras porque são Fla ou Flu, porque são “de esquerda” ou “de direita”, muito, muitíssimo menos porque têm a pele mais clara ou a pele mais escura, porque são hétero ou homo – mas porque são boas ou são más. Simples assim. Se, ao final da história de amor, desejam vingança, vingança, vingança, idiotamente, absurdamente, babacameente, à la Lupicínio, ou se, muito ao contrário, desejam que o outro fique bem, fique feliz, e, sobretudo, que tenha amor.
A letra que o americano Albert Askew Beach criou em cima da melodia de “Que reste-t-il de nos amours?”, que não tem absolutamente nada com a letra original, é uma beleza, uma maravilha.
Pô, meu, a gente não deu certo. A gente na verdade não poderia dar certo. Então, com a maior boa vontade, eu te digo: vamos nos separar. Vamos em frente. E, puxa, caríssima/o, que a vida te trate bem!
O que o narrador de “I Wish You Love” diz é muito parecido com uma das letras que considerto mais preciosas entre todas, a de “Que tinguem sort” , escrita em catalão por Lluís Llach. È assim:
Si em dius adéu,
vull que el dia sigui net i clar,
que cap ocell
trenqui l’harmonia del seu cant.
Que tinguis sort
i que trobis el que t’ha mancat
en mi.
Ou, em língua que a gente entende melhor:
Si me dices adiós
quiero que el día sea limpio y claro,
que ningún pájaro
rompa la armonía de su canto.
Que tengas suerte
y que encuentres
lo que te ha faltado en mí.
***
Bem , eis finalmente a letra que Nelsinho Motta fez, não para “Que reste-t-il de nos amours?”, mas para “I Wish You Love”. Ele foi, como se pode ver, bastante fiel – e fez versos lindos, que Bethânia canta maravilhosamente.
Eu te desejo amor
(Charles Trenet-Léo Chauliac, versão Nelson Motta)
Eu te amei como um filho
Mas o amor também envelhece, embora não devesse.
É hora de dizer adeus,
Mas antes de partir eu quero desejar a você
Um novo amor no coração,
Um céu azul, uma canção e mais que um beijo
Eu te desejo um novo amor
Que te alegre e faça rir,
Que faça teu corpo sentir frio e calor, prazer e dor
Mais do que eu.
Meu coração já aceitou que o nosso tempo já passou
Que para nós não há depois e nem talvez.
Eu te desejo amor sem fim
Que desejei só para mim.
Adeus, amor, bem-vindo, amor,
Vamos seguir.
Meu coração já aceitou que o nosso tempo já passou
E para nós não há depois e nem talvez.
Eu te desejo amor sem fim
Que desejei só para mim.
Adeus amor, bem-vindo, amor,
Vamos seguir.
Um P.S. em agosto de 2022: Escrevi isso aí acima alguns meses atrás, nem consigo saber exatamente qual mês, depois de ouvir Bethânia cantando “Eu te desejo amor”, como já foi dito. Faltou concluir o texto – falar dos filmes em que a canção tem grande importância, Baisers Volés, de François Truffaut, em que “Que reste t-il de nos amours?” é cantada bem no início, e Terapia do Amor/Prime, em que “I Wish You Love” funciona como um belo fecho. Bookends – apoiadores de livros, no começo e no fim, o que remete ao álbum de Simon & Garfunkel, que não tem nada a ver com o que estou falando.
Aconteceu que abandonei o texto. Deixei de lado, pra completar algum dia – mas acabou não rolando.
Aí hoje, agora há pouco, tocou na minha rádio “Que reste t-il de nos amours?”, na gravação de Patrick Bruel & Laurent Voulzy– e me lembrei desse texto abandonado, e pensei, diabo, por que não publicar, mesmo sem falar dos filmes? O principal está tudo aí.
Pois é. Então vou publicar.
P.P.S: Bem, quanto ao fato de que já há neste site um outro post falando da letra de “I Wish You Love”, não vai se falar nada? Ahnnn… Claro, claro. Está aqui, ó: os sueltos não têm que ser sobre temas inéditos…
24 e 25/9/2022
Que reste-t-il de nos amours
Em francês , mesmo sendo estranha a tradução, é linda.
Parabéns! Linda análise. Tão bom quando alguém se dispõe a compartilhar coisas boas.
I wish you love
Fiquei tão feliz de achar este texto! Estava agora mesmo tentando comparar linha a linha das três versões e pensando: se eu que estava doida, ou se a tradução era ruim, ou se eu não sei francês suficiente ainda, ou tudo junto ao mesmo tempo. As três músicas são três passeios diferentes, lindos e doloridos. Obrigada por ter referendado a comparação. Primeira visita aqui, em 2024, tomara que a IA não acabe com textos assim.
Ah! Esqueci de dizer que encontrei uma versão belíssima do João Gilberto da letra francesa.
Maravilhosa a original em francês! Tenho ouvido muito ultimamente, em looping. E não me canso. Estudando o idioma francês esbarro nestas preciosidades!
Seu texto também é muito bom.
Vejo sensibilidade em você porque também tenho sensibilidade.
Só achei muito babaca você comparar o nazismo com o período em que Bolsonaro foi presidente do Brasil, num texto tão bacana que tinha por objetivo falar sobre uma canção tão bela! E disse que bolsonaristas inventaram as Fake News (os boatos de sempre). ♀️
Pessoas inteligentes lêem o que você escreve, sabia? Está na internet. Forever! Não jogue no lixo um texto tão bom por uma perseguição política idiota e por uma obsessão por implantar seu pensamento na cabeça dos outros. Isto é tolice e babaquice sem fim. Somos livres para pensar. Eu, de direita; e você, de esquerda. Ou não? Soldados???Botas??? Do que você está falando, meu caro??? Foi uma viagem na maionese ou foi a velha tentativa de transformar mentiras em verdades, porque ditas à exaustão? Mesmo assim o texto é bom. Digo eu, uma Bolsonarista.! Pena que você enfiou nele seu pensamento cauterizado sobre política, como um bom esquerdinha, que deve pensar nisso até na hora do sexo.
Mas o texto é bom, volto a dizer.
E você tem bom gosto musical. Como eu, uma que, segundo você, não passo de uma Bolsonarista que espalha Fake News (boatos). Pelo menos eu sei diferenciar o nazismo de outros eventos. Aliás, como o mundo dá voltas, né? Aposto que hoje você gostaria que o Adolfinho estivesse aqui para ajudar o Hamas.
Mas, voltando ao tema a que você se propôs e acabou se desviando (você escreve bem, só precisa focar. Vai treinando que você tem futuro):
A música é belíssima, nas três versões, A melodia já é uma poesia em
si! A meu ver, a original, em primeiro lugar. uma melancolia doce e suave. Em segundo lugar, a versão americana (os americanos são muito bons, de modo geral) e em terceiro, não por razões políticas, a versão brasileira.
Apesar das fugas do assunto, parabéns pelo texto!
Te desejo amor! Paz! E que você possa viver num país onde seja livre para continuar escrevendo, e se expressando!
Por que meu comentário está passando por análise?
Se o autor do texto pode escrever: “ Se, ao final da história de amor, desejam vingança, vingança, vingança, idiotamente, absurdamente, babacameente, à la Lupicínio”, chamando o grande Lupicínio Rodrigues de idiota e babaca, por que cargas d’água, eu não posso me expressar??? E elogiei o texto. Muito bom mesmo! Com alguma pequenas ressalvas. Só pode comentar rasgando seda, bajulando? What???
Estava no Google pesquisando sobre a letra, cheguei aqui, deu-lhe a honra de ler o texto todinho, de elogiar, apenas pontuando algumas coisas, e meu comentário passará por analise??? Acaso voltamos no tempo, Brasil, década de 60 e eu não me dei conta???
Oi, Eliana!
Desculpe aí, mas a culpa não é minha… Todo site e/ou blog é assim. O primeiro e-mail de um leitor é automaticamente retido pelo aplicativo, para que o administrador (no caso, euzinho aqui) veja se não é spam, se não é ofensivo, essas coisas… Depois que o primeiro é liberado, os seguintes passam a entrar automaticamente.
A demora de um diazinho foi porque só agora eu abri a caixa de correio e vi seu e-mail…
Mas acredite em mim: não foi nada contra você especificamente. Nem foi uma decisão minha. É coisa automática.
Um bom fim de semana, Eliana! Um abraço!
Sérgio
D’accord Sérgio! Merci!