Dona Ângela Vaz Leão está comemorando 99 anos nesta sexta-feira, 1º de outubro.
Nunca consegui chamá-la de outra forma a não ser Dona Ângela, mesmo ela sendo minha prima, e não propriamente distante. Ela e meu pai eram primos-primeiros; Juvêncio, o vô Bitu, pai do meu pai, era irmão de Saul, pai da Dona Ângela. Somos, portanto, primos em segundo grau.
Embora não propriamente distantes, nunca fomos próximos – mas, de maneira interessante, fascinante mesmo, sempre tivemos pontos de contato, pontos em comum, ao longo das muitas décadas.
Há uma história – da qual, devo dizer, nunca tive comprovação – de que minha mãe, normalista, deu aula para a jovenzinha Ângela em Formiga, a terra do nosso ramo de Vaz, a cidade natal tanto dela quanto do meu pai, e onde ele e minha mãe se casaram.
Fomos quase vizinhos nos anos 1950, quando Belo Horizonte era uma cidade ainda agradável, não gigantesca, não opressiva, tinha bem menos de 1 milhão de habitantes e, ao Sul, terminava no Bairro da Serra. Dona Ângela, Seu Wilson e os meninos moravam na Rua dos Dominicanos, a última rua que existia ali. Acima dela ficava o Convento dos Dominicanos e sua grande área – e o resto era mato, até chegar à Serra do Curral, a serra que justifica o nome do bairro e da cidade, e sobre a qual Drummond faria mais tarde o apelo triste, quando a mineradora que ocupou a área andou cortando o belo horizonte – “Olhe bem para as montanhas”, pedia o poeta, certamente se lembrando que as de sua própria cidade natal, Itabira, haviam sido decepadas por mineradoras.
Tergiversei um pouquinho. Perdão.
Queria apenas registrar que acima da Rua dos Dominicanos só havia o convento, e a estrada sinuosa que continuava a Rua do Ouro até chegar ao Palácio das Mangabeiras, e mato, e as montanhas, a serra.
Eu morava duas quadras abaixo, no Edifício Tameirão, um prédio de três andares na Rua do Ouro bem em frente à Rua Ramalhete – sim, a rua que Tavito homenagearia na canção doce que nem o primeiro beijo na primeira namoradinha.
Íamos todos às missas na Igreja dos Dominicanos, onde muitas vezes atuei como coroinha.
Meu irmão Geraldo, 4 anos e meio mais velho que eu, regulava com o Atos, o primogênito da Dona Ângela, e eu, com o Mário. Não era sempre que nos víamos, mas nos víamos, de vez em quando. As três meninas, as gêmeas Regina e Bia e a caçula Ângela, que na família e para os amigos sempre foi Branquinha, eram mais novas, não me lembro delas nessa época.
Por uma dessas coincidências incríveis de que é feita a vida, o Mário e eu viríamos a ser colegas de classe no Aplicação – o Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. O colégio servia assim meio de laboratório para os alunos da faculdade – que depois mudaria o nome para Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, o que renderia sua sigla-nome de guerra, Fafich. (Não creio que haja outra escola superior de país de língua portuguesa com um nome tão gostoso quanto a Fafich.)
Dona Ângela foi uma das professoras mais amadas da Fafich. Mais tarde, ela viria a ser – conforme diz a Wikipedia – a primeira diretora do Departamento de Letras da UFMG, e também diretora da própria Fafich, na melhor época da vida da minha irmã Nilze, que fez Letras depois do final do casamento em que teve quatro filhos.
Naquele início dos anos 1960, a professora Ângela era a ídola (naquele tempo ainda não se usava essa expressão brincalhona…) de um monte de jovens apaixonados por letras, literatura, e que teve a sorte de estudar naquele prédio da faculdade que jamais chegou a ser acabado, concluído, na Rua Carangola, no Santo Antônio. Uma dessas jovens alunas de Letras viria a ter uma influência descomunal sobre este primo da Dona Ângela aqui.
Quando Mário Leão, eu e nossa absolutamente fantástica turma estávamos no segundo ano do ginásio no Aplicação, o correspondente ao que até há pouco era o sexto dos oito anos do ensino básico, nossa professora de Francês ficou grávida. E uma das alunas da Dona Ângela ali no prédio ao lado veio para substituí-la. É muito esquisito pensar hoje que Vivina tinha então apenas dez anos mais que nós, os alunos do segundo ano, todos ali com 12 anos, alguns poucos já com 13.
Vivina de Assis Viana viria a ser, entre outras cositas, a responsável por eu virar jornalista (por via só um pouquinho transversa), a madrinha do meu casamento com Suely, a amiga que indicou para ela o gineco que fez a cesárea para minha filha nascer; em suma, uma das minhas maiores, mais queridas amigas.
A gente ainda estava em Belo Horizonte quando Vivina brincava que, se pudesse escolher a família ideal, perfeita, Dona Ângela seria a mãe dela, e nós, os meninos daquela turma do Aplicação, os seus filhos.
Eu, que fui aluno da Vivina, que foi aluna da Dona Ângela, que (é o consta…) foi aluna da minha mãe.
Hoje, já uns seis anos depois que nos reunimos todos para uma grande festa dos 50 anos da nossa formatura do ginásio, em mensagens trocadas sobre os 99 anos da Dona Ângela, Vivina mandou o seguinte:
“A mulher que melhor usou a própria inteligência, na visão dessa aluna eternamente encantada, fascinada, anestesiada. Ter sido aluna dela e da Magda foi e continua sendo um privilégio que nunca vou saber se mereci, ou mereço. Parabéns, Dona Ângela, pelo aniversário, pela competência, pela simplicidade, pelo amor ao significado das palavras. 📚📚📚”
***
São demais os perigos e os acasos desta vida, e então aconteceu que meu sobrinho André, o quarto dos seis filhos do meu irmão Floriano e da Marina, se apaixonasse pela Branquinha, a caçula da Dona Ângela. Eram primos, sim, o André e a Branquinha, mas aí já um tanto distantes – o quê? de terceiro grau? Talvez quarto grau – o que os torna tão geneticamente distantes quanto, digamos, o Ethan Hawke, que sempre achei muito parecido com o André (embora menos belo), e a ucraniana Olga Kurylenko. (Bem, se fosse pra falar de amores de primos e primas, tios e sobrinhas, tias e sobrinhos na família Vaz, ou em qualquer outra família, real ou humilde, real ou de ficção, a história iria longe – mas deixa pra lá…)
Naquela época em que André e Branquinha viviam seu romance feliz em Belo Horizonte, tornaram-se amigos de uma garota muito interessante, formada em Filosofia exatamente na Fafich, que Deus, esse roteirista apaixonado por coincidências, assim como Lelouch e Kieslowski, botaria na minha vida – Mary Zaidan.
André tomou como absolutamente seus os filhos da Branquinha, Daniel e Mirna, e os dois tiveram Sarah, uma verdadeira Vaz y Vaz. Com o que virei tio-avô da neta da Dona Ângela…
André era bonito e bom demais, e então o Senhor logo o chamou para mais perto de Si. Daniel também viria a ser chamado cedo demais – mas esteve presente na última vez em que vi Dona Ângela, não consigo dizer exatamente em que ano, logo eu, que anoto tudo porque verba volant, scripta manent. Ainda descubro o raio da data exata, mas foi no meio da primeira década destes novos século e milênio.
Fomos visitá-la os três irmãos – Floriano, o primogênito, que sempre se deu muito bem com ela, sempre se manteve em contato com ela, e nós dois mais jovens, Geraldo e eu. Chegamos lá bem no meio dia, e ela nos recebeu como uma boa mineira recebe gente próxima, deixando-nos inteiramente à vontade na sala de seu apartamento classe média. (Uma carreira gloriosa como professora, chefe de departamento, diretora de faculdade, professora-doutora não dá a ninguém status de rico neste país.)
Falamos de tudo um pouco, e Dona Ângela mencionou, uma hora lá, que tinha conhecimento da minha importância no jornalismo – o que me deixou bastante encabulado, porque nunca tive qualquer importância, e isso mostra que alguém a deixou mal informada.
Serviu-nos uma cachacinha. Uma cachacinha mineira, das boas; e nos contou sobre a procedência. Me deu de presente o mais recente de seus muitos livros – não me lembro se o Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio: aspectos culturais e literários ou se o Cantigas de Santa Maria: novas leituras, novos caminhos. As cantigas de Santa Maria foram um de seus objetos de estudo mais apaixonados. Está na Wikipedia: “Os estudos sistemáticos, assim como a divulgação da obra poética do Rei de Castela no Brasil, foram iniciados pela professora Ângela”.
Me lembro perfeitamente de que saí de lá meio tonto – mas de uma tontura deliciosa que era mistura da cachacinha mineira com a sensação de ter estado com uma pessoa absolutamente especial.
Que, por acaso ou mero descaso, é minha prima. Prima-primeira de meu pai. Sobrinha do vô Bitu.
1º e 2/10/2021
Excelente
Acordar e ler esse texto, foi uma das melhores sensações desses últimos tempos! A cronologia dos fatos, as pessoas citadas, quase todas eu conheço ou conheci, me fizeram lembrar de minha mãe. Sempre estava com ela na suas visitas aos seus parentes. Voltei no tempo com ótimas lembranças. Obrigada primo!
Deliciosa leitura sobre encantadora família. Parabéns para dona Ângela pelo aniversário e tudo o que representa nessa família. E… se permitem, parabéns a Minas Gerais.
Sérgio, Sérgio!
Seria pretensão afirmar que entendemos de afetos?
Os 99 anos de Dona Ângela nos trouxeram de volta os velhos tempos do Aplicação, onde eles, os afetos, rolavam soltos, graças a Deus!
Seria pretensão afirmar que ainda rolam? Afinal, o que acontece nesse seu texto, senão um rolar sem fim de afetos, nascidos, talvez, em aulas de sua mãe pra D. Ângela, alimentados em aulas dela pra mim , e solidificados nas minhas aulas pra você, que a vida inteira tem me devolvido tudo, devagar, dose a dose, carta a carta, conversa a conversa, telefonema a telefonema, e-mail a e-mail, zap a zap?
Não preciso relatar, reviver ou relembrar nossos caminhos , em Belo Horizonte ou aqui em São Paulo, você fez isso lindamente.
Mas há uma coincidência interessante, que talvez você não saiba: eu tb morava na Rua do Ouro, em 62, quando entrei pro Aplicação e te encontrei, menino, 12 anos, no segundo. ginasial. Rua do Ouro, 282, era lá que eu morava, em uma república de estudantes.
Outra coisa: no dia em que nos mudamos pra São Paulo, você estava conosco no fusquinha do Marinho, que depois viria a ser seu colega de jornal, lembra? Aquele “buraco” atrás do banco veio repleto de LPs…
Ah, de novo, meu lado pretensioso, necessitado de umas lições de humildade: eu imaginava ser diplomada em Sérgio Vaz, mas nunca soube – nem desconfiei – que ele havia sido coroinha no Convento dos Dominicanos, ali, finzinho da “nossa” rua…
Benditos os 99 anos da Dona Ângela, que nos levaram a reviver histórias, ativar lembranças,
eternizar afetos.
Beijo de afeto eternizado, Sérgio.
Vivina