É fascinante que Georges Moustaki tenha escrito uma canção chamada “Ma Solitude” e Barbara, uma canção chamada “La Solitude”.
E é fascinante que tenham os dois cantado a solidão como se ela fosse uma presença forte, grudenta, pegajosa. Como se fosse uma companheira, uma amante.
Por ter dormido tantas vezes com a minha solidão – diz Moustaki –, fiz dela quase uma amiga, um doce costume. Ela não me deixa nunca, fiel como uma sombra. Ela me seguiu aqui e ali, em todos os cantos do mundo. Não, nunca fico só (pois tenho) a minha solidão.
É claro que Moustaki disse isso de maneira estupidamente mais bela do que nessa tradução/traição simplória que fiz:
Pour avoir si souvent dormi
Avec ma solitude
Je m’en suis fait presque une amie
Une douce habitude
Elle ne me quitte pas d’un pas
Fidèle comme une ombre
Elle m’a suivi çà et là
Aux quatres coins du monde
Non, je ne suis jamais seul
Avec ma solitude.
Menos direta, mais intrincada, a letra de Barbara é daquelas coisas apavorantemente belas. E é impressionante, me pego percebendo agora, como a forma de ela falar da solidão é feminina – mas, ao mesmo tempo, tem semelhanças com a de Moustaki:
Eu a encontrei diante da minha porta, numa noite, quando voltava para casa. Ela está em toda parte, ela volta, ela está aí, a farejadora de amores mortos. Ela me segue aqui e ali, a bruxa, que o diabo a carregue. Ela voltou, está aí, com sua cara de quaresma, com seus grandes olhos fechados. Ela faz nossos corações ficarem para trás. Ela faz nossos corações chorarem. Ela faz com que as manhãs fiquem pálidas e as noites longas e desoladas.
Claro que isso aí é só uma pálida tentativa de trazer para a Última Flor do Lácio, Inculta e Bela, a maravilha esplendorosa que é o poema de Barbara. Não que a Última Flor do Lácio não saiba ser esplendorosamente maravilhosa – é só que poesia não se traduz:
Je l’ai trouvée devant ma porte
Un soir, que je rentrais chez moi
Partout, elle me fait escorte
Elle est revenue, elle est là
La renifleuse des amours mortes
Elle m’a suivie, pas à pas
La garce, que le Diable l’emporte
Elle est revenue, elle est là
Avec sa gueule de carême
Avec ses larges yeux cernés
Elle nous fait le coeur à la traîne
Elle nous fait le coeur à pleurer
Elle nous fait des matins blêmes
Et de longues nuits désolées.
Não conseguia me lembrar do nome que se dá à figura de linguagem que Barbara e Moustaki usaram ao transformar a solidão numa pessoa – uma suave companheira, no caso dele, uma bruxa, uma cadela, no caso dela. Vejo que é a prosopopéia. Está na Wikipedia: “Prosopopéia ou personificação é uma figura de linguagem que consiste em atribuir a objetos inanimados ou seres irracionais sentimentos ou ações próprias dos seres humanos.”
Está no muito mais augusto Dicionário de Termos Literários do professor Massaud Moisés: “Figura de retórica que consiste em atribuir vida, ou qualidades humanas, a seres inanimados, irracionais, ausentes, mortos ou abstratos”.
Bem, acho que inanimada e abstrata a solidão não é – mas certamente é irracional. Se é ausente, isso depende – e é exatamente sobre a questão de se a solidão é ausente ou não que algum tempo atrás me peguei pensando em escrever um textinho sobre as canções que tanto Moustaki quanto Barbara compuseram sobre Ma/La Solitude – as duas tratando a solidão como, em suma, para simplificar a prosopopéia toda, um ser humano.
***
Barbara e Moustaki foram contemporâneos: ela é de 1930, ele de 1934. Ela morreu em 1997, com, portanto, 67 anos – pouco, para mim, que já passei disso. Ele viveria mais – morreria em 2013, aos 79.
Fizeram apresentações e gravações juntos. Ele compôs para ela, ela compôs para ele, compuseram juntos. Moustaki escreveu para ela, uma dama morena, “La Dame Brune”, e ela participou criando novos versos. Quando ela gravou a canção, em um show no Olympia em 1969, já era uma estrela, e ele era um iniciante, até então conhecido apenas como o autor da letra de “Milord”, que a grande diva Edith Piaf havia gravado. (Parece que La Môme, uma mulher que traçava quem passasse à sua frente, traçou o garotão boa pinta, ali pela segunda metade dos anos 50.)
Algum tempo depois, em 1972, Moustaki já então reconhecido como um grande autor e cantor, voltariam a gravar e a compor juntos. Ele fez a primeira parte de uma canção – “La Ligne Droite” – que falava de encontros e desencontros de amantes, e enviou para ela. Barbara compôs então a segunda parte, a resposta da mulher ao que o homem havia dito.
“La Ligne Droite” é uma absoluta maravilha. É daquelas canções que fazem você tremer de emoção a cada vez que ouve.
O próprio Moustaki escreveria o seguinte, para a edição de uma caixa (um coffret, como eles dizem) de quatro CDs lançada pela Polydor francesa em 1989:
“Barbara, cúmplice de sempre, compôs uma nova música sobre uma canção que eu acabava de escrever num dia do verão de 1972. Nós cantaremos cada um nossa versão.”
Barbara e Moustaki foram frères- camarades-complices, como ele gostava de dizer, juntando os três termos numa coisa só. E creio também que dá dizer que foram também amantes.
Nunca li nada que afirmasse isso com todas as letras, mas dá para ter certeza.
Porque – ao que tudo, tudo, tudo indica – os dois eram como Piaf: traçavam quem passasse à sua frente.
Como passaram um na frente do outro várias vezes…
***
E traçavam.
Quando estive no Chile de Salvador Allende, em março de 1973 (poucos meses antes do golpe de 11 de setembro, portanto), comprei um disco de uma jovem chamada Marta Contreras.
Como diversos dos músicos que apoiavam o governo Allende, Marta conseguiu escapar quando veio o golpe; exilou-se em Paris. Quando comprei o disco de 1979 de Moustaki, reencontrei a moça: ela fazia
belíssima segunda voz em diversas das canções, em especial em “Et Pourtant Dans le Monde”, uma das dezenas de músicas políticas do compositor. Estavam casados – na vida e na música.
Georges Moustaki se apaixonava pelas mulheres que passavam por sua vida e as incluía em sua música – foi assim a vida inteira.
Conheço um pouco sobre a vida de Moustaki, e quase nada sobre a de Barbara. Mas dá para dizer, com segurança, que ela, como ele, traçava quem passasse pela frente e fosse interessante.
Como eles mesmos disseram, nos versos de “La Ligne Droit”.
Quando estão para se reencontrar, depois de um longo tempo separados, ele diz para a mulher que ama que suas roupas estão com poeira e com o perfume desbotado de amores passageiros que deixaram a solidão mais leve no alvorecer depois de suas noite não dormidas e solitárias. E pergunta: e você, meu belo amor, me diga se houve homens que fizeram sua vida um pouco menos monótona, que ajudaram você a suportar o inverno depois do outono e os silêncios obstinados do telefone.
Mes habits ont parfois des traces de poussière
Et le parfum fané des amours passagères
Qui m’ont rendu ma solitude plus légère
A l’aube de mes nuits blanches et solitaires.
Et toi mon bel amour, dis moi s’il y a des hommes
Qui t’ont rendu la vie un peu moins monotone
Qui t’aident à supporter l’hiver après l’automne
Et les silences obstinés du téléphone
E ela responde que claro, com certeza teve homens…
Oh, moi, mon cher amour, bien sûr jai eu des hommes
Qui m’ont rendu la vie un peu moins monotone
Et m’aident à supporter l’hiver après l’automne
On ne s’attend pas au bout d’une ligne droite.
Para concluir, maravilhosamente, que dois amantes não se encontram diretamente após uma linha reta – é preciso passar por desvios e desvios até chegar lá.
***
E então chego ao cerne da questão. The heart of the matter.
A grande dúvida:
Como é possível que essas pessoas, essa Barbara e esse Moustaki, que comiam quem lhes passasse à frente, que tiveram mil mulheres/homens na vida, pudessem ser capazes de fazer essas canções tão absolutamente belas sobre a solidão, ma solitude, la solitude?
Mas seria isso de fato uma dúvida, uma questão?
A resposta é tão simples, meu Deus do céu e também da terra!
Isso é possível porque eles são artistas.
A resposta, na verdade, a rigor, a rigor, é mais simples ainda: isso é possível porque eles são seres humanos.
Não é preciso ter passado fome para saber que passar fome é um horror. Nem para saber que é um horror, nem para lutar contra a existência dela.
Não é preciso ter a pele negra para fazer um filme sobre a vida de negros. Não é preciso ter a pele branca para fazer um romance (ou um levantamento histórico) sobre a vida de brancos.
Mas aí este texto começa a enveredar para a dureza das questões políticas – e não é por aí que eu queria que ele fosse. Queria apenas fazer um suelto sobre as canções de Barbara e Moustaki que falam de la/ma solitude. Um suelto – uma bobagenzinha.
Aqui está a gravação original, de estúdio, de “Ma Solitude”, de Georges Moustaki:
Aqui, Barbara canta “La Solitude” em estúdio – mas direto, de uma vez só, como se fosse ao vivo:
Moustaki e Barbara cantam juntos “La Dame Brune”:
https://www.youtube.com/watch?v=7m7eK8-h5j0
E aqui, a gravação original, em estúdio, de “La Ligne Droite”:
E, finalmente, as letras das duas canções:
Ma Solitude
Georges Moustaki
Pour avoir si souvent dormi
Avec ma solitude
Je m’en suis fait presque une amie
Une douce habitude
Elle ne me quitte pas d’un pas
Fidèle comme une ombre
Elle m’a suivi çà et là
Aux quatres coins du monde
Non, je ne suis jamais seul
Avec ma solitude
Quand elle est au creux de mon lit
Elle prend toute la place
Et nous passons de longues nuits
Tous les deux face à face
Je ne sais vraiment pas jusqu’où
Ira cette complice
Faudra-t-il que j’y prenne goût
Ou que je réagisse
Non, je ne suis jamais seul
Avec ma solitude
Par elle, j’ai autant appris
Que j’ai versé de larmes
Si parfois je la répudie
Jamais elle ne désarme
Et, si je préfère l’amour
D’une autre courtisane
Elle sera à mon dernier jour
Ma dernière compagne
Non, je ne suis jamais seul
Avec ma solitude
Non, je ne suis jamais seul
Avec ma solitude
***
La Solitude
Barbara
Je l’ai trouvée devant ma porte
Un soir, que je rentrais chez moi
Partout, elle me fait escorte
Elle est revenue, elle est là
La renifleuse des amours mortes
Elle m’a suivie, pas à pas
La garce, que le Diable l’emporte
Elle est revenue, elle est là
Avec sa gueule de carême
Avec ses larges yeux cernés
Elle nous fait le coeur à la traîne
Elle nous fait le coeur à pleurer
Elle nous fait des matins blêmes
Et de longues nuits désolées
La garce ! Elle nous ferait même
L’hiver au plein coeur de l’été
Dans ta triste robe de moire
Avec tes cheveux mal peignés
T’as la mine du désespoir
Tu n’es pas belle à regarder
Allez, va t-en porter ailleurs
Ta triste gueule de l’ennui
Je n’ai pas le goût du malheur
Va t-en voir ailleurs si j’y suis
Je veux encore rouler des hanches
Je veux me saouler de printemps
Je veux m’en payer, des nuits blanches
A coeur qui bat, à coeur battant
Avant que sonne l’heure blême
Et jusqu’à mon souffle dernier
Je veux encore dire je t’aime
Et vouloir mourir d’aimer
Elle a dit Ouvre-moi ta porte
Je t’avais suivie pas à pas
Je sais que tes amours sont mortes
Je suis revenue, me voilà
Ils t’ont récité leurs poèmes
Tes beaux messieurs, tes beaux enfants
Tes faux Rimbaud, tes faux Verlaine
Eh ! bien, c’est fini, maintenant
Depuis, elle me fait des nuits blanches
Elle s’est pendue à mon cou
Elle s’est enroulée à mes hanches
Elle se couche à mes genoux
Partout, elle me fait escorte
Et elle me suit, pas à pas
Elle m’attend devant ma porte
Elle est revenue, elle est là
La solitude, la solitude
Março de 2021