Longe das utopias de qualidade de vida e modernidade que as gerações do século passado acalentaram para o futuro, o Brasil entra na segunda década do século 21 destinado à involução. Sob o patrocínio do presidente Jair Bolsonaro, os anos correm aceleradamente para trás.
Enquanto 50 países iniciaram a vacinação contra a Covid-19 em dezembro, alguns deles ministrando agora a segunda dose, por aqui Bolsonaro anima um time de resistência e contestação – “se você virar um jacaré o problema é seu”. Ao negacionismo sobre a pandemia, que fez o país perder tempo e vidas, somam-se outras birras que podem, por exemplo, nos deixar à margem da tecnologia 5G, pronta para revolucionar o planeta. A indústria nacional quer a participação dos chineses no leilão, não por amor aos olhos puxados, mas porque já usa chips e inteligência dos “comunistas”. Bolsonaro disse não.
Na contramão do país do futuro ou do “país que vai pra frente”, slogan criado para esconder os desmandos da ditadura militar que o presidente tanto admira, sob a égide de Bolsonaro o retrocesso é geral. Na educação, na fiscalização ambiental, na saúde, nos modos, que já foram mais cordiais.
O presidente incentiva ainda práticas da Idade Média, do olho por olho, ao insistir em armar a população para defesa pessoal e “proteção da liberdade”. E quer a volta do voto impresso, proposta que promete aprovar logo depois da eleição da mesa da Câmara, em 1º de fevereiro. “Se a gente não tiver voto impresso em 2022, pode esquecer a eleição”, ameaça.
Não à toa, a eleição do presidente da Câmara dos Deputados tem importância quase dramática. Um eventual êxito do candidato Arthur Lira (PP-AL) abre a porteira para boiadas de propostas retrógradas, conferindo ao presidente uma vitória política incontestável que, no mínimo, coloca um desconfortável cabresto no Parlamento. Tudo absolutamente evitável se os partidos de esquerda tiverem algum juízo, algo a ser conferido nesta segunda-feira quando seus líderes se reúnem novamente com Baleia Rossi (MDB-SP).
Ter um aliado dirigindo a Câmara é desejo de qualquer presidente. É virtuoso quando isso se dá para fazer avançar temas de interesse do país e absolutamente danoso se a pauta estiver longe de ser republicana.
Governistas no Congresso dizem que 2021 será o ano das privatizações e das tão propaladas reformas tributária e administrativa. Mas até as emas do Alvorada sabem que é falácia.
Com muito empenho legislativo – e apoio zero de Bolsonaro – será até possível avançar na reforma tributária, visto que dois projetos de iniciativa de deputados e senadores estão avançados. A administrativa, que o presidente odeia, não tem qualquer chance. Se por milagre andar, só começará a valer em um futuro distante.
As privatizações não passaram de devaneios. Nada, absolutamente nada foi vendido, e nada indica que será. Em recente entrevista nas páginas amarelas de Veja, o incensado ministro das Comunicações, Fábio Faria, preferiu falar em parceria com a iniciativa privada em vez de venda dos Correios, uma das empresas listadas por Paulo Guedes na conta fantasiosa de um trilhão de reais de privatizações prometidas na campanha de Bolsonaro.
Ao contrário de privatizar, Bolsonaro aumentou a conta. Na penúltima semana do ano criou uma estatal para chamar de sua: a NAV Brasil Serviços de Navegação Aérea, projeto de Dilma Rousseff. Também não extinguiu a EPL – Empresa de Planejamento e Logística, inventada pela presidente cassada para tocar o imaginário trem-bala Rio-São Paulo. Tampouco tratou de dar fim ao Canal Brasil, ex-TV Lula e hoje TV Bolsonaro, que se transformou em emissora oficial, com transmissão ao vivo das aglomerações diárias do presidente em plena pandemia.
A distância de Bolsonaro das emergências do país fica ainda mais evidente nos vetos que fez à LDO, cortando a intocabilidade de recursos destinados à pandemia e ao socorro de miseráveis. A necessidade de ter flexibilidade no orçamento, argumento utilizado pelo Ministério da Economia para os vetos, teria lógica se aplicada a todos os itens, mas cai por terra ao não valer para os programas do coração das Forças Armadas, como a compra de caças e o desenvolvimento do submarino nuclear.
Assim como não dá bola para a defasagem do Brasil em relação a outros países no que tange ao acesso à vacina, Bolsonaro não está nem aí para a marcha à ré do país. Parece gostar dela. Sua pauta do ano se resume em livrar-se das investigações sobre os relatórios da Abin em prol do filho Flávio, enroladíssimo com as “rachadinhas”, e do processo de sua comprovada interferência na Polícia Federal, em curso no STF. Além de evitar que pedidos de impeachment ganhem corpo.
No mais, continuará a tergiversar, criar memes, demonizar a imprensa. A pisar fundo nas boçalidades para agradar aos seus, que, inebriados, aplaudem as bestices do “mito”.
Já perdemos tempo demais. A única hipótese de o Brasil turbinar sua velocidade rumo ao futuro é se livrar do capitão do atraso. Quanto mais rápido, melhor.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 3/1/2021.