Ouvíamos música na sala enquanto chovia no escritório, no quarto da Marina e nosso quarto.
Tínhamos visto o primeiro Intermezzo, o sueco, de 1936, no final da tarde do sabadão. Mary tinha dito que topava ver também o segundo, o americano, de 1939 – e, claro, teria muito mais sentido para mim fazer um texto sobre os dois para o 50 Anos de Filmes. Perguntou se a gente tinha o filme – somos antigos, do tempo em que era preciso ter o objeto, o suporte físico, para ver um filme ou ouvir um disco.
Tínhamos visto o original sueco em suporte físico – aquela coisa muito antiga que a gente põe dentro de um aparelho especialmente projetado para aquele exato fim e aí vê as imagens gravadas nele na TV. Eu sabia que não possuímos a refilmagem americana em um daqueles objetos de formato redondo com um buraco no meio, conhecidos como “discos”. Mas me ocorreu que atualmente a gente pode ouvir música e/ou ver filmes mesmo sem ter ido a uma loja para adquirir o suporte físico que contém a obra, o tal do disco.
E então vimos, depois do jantar, o Intermezzo em que David O. Selzinick escreveu nos créditos iniciais: “Introducing Ingrid Bergman”.
Introducing a atriz que já havia, naquele ano de 1939, feito uma dúzia de filmes, a maioria deles como protagonista – mas, para os americanos, parece que o que foi feito fora das fronteiras do país não existe, e então, segundo Selznick, foi o Intermezzo americano, a refilmagem, o 13º filme da jovem atriz, que a introduziu ao público.
Quando terminamos de ver o Intermezzo americano, fui me encaminhando para ouvir música.
Em dias de semana, o normal seria eu me levantar e vir para o escritório, para o computador, para talvez ler um pouco sobre o filme, ou já anotar a ficha técnica e escrever o lead da anotação que iria fazer sobre ele – no caso, eles. Mas era sabadão, e então achei que, diabo, eu merecia ficar um tempo sem produzir nada, só curtindo – e dei início a um tempinho de música, que se mostrou delicioso.
Ouvimos música durante umas boas duas horas.
Diversas coisas – diversas, variadas. De Crosby, Stills, Nash & Young a Georges Moustaki. De Nana Mouskouri a Jackson Browne. Passando por Dylan e Joan Baez, é claro, porque nunca dá para não ouvir Dylan e Joan Baez.
Agora, quando me sentei aqui para fazer esta anotação, no final da noite do domingo, me lembrei que ouvimos várias versões de “Let it be me” – mas não ouvimos a que talvez seja a mais bela de todas.
Ouvimos “Let it be me” com os Everly Brothers, num show de 1960. Com o trio formado pelas três cantoras maravilhosas da cena mezzo country mezzo folk dos anos 60 a 90, Emmylou Harris, Linda Ronstadt e Dolly Parton. Com Elvis, aquele vozeirão dele que nunca consegui entender e respeitar como acho que deveria. Com Art Garfunkel e o filho dele.
Foi só agora, umas 24 depois daquela gostosa sessão de música, que me lembrei de que não botei a versão de Nina Simone – e, meu Deus, como é absolutamente bela a versão de “Let it be me” com Nina Simone!
Enquanto a gente ouvia música – bela música, maravilhosa música – na sala, chovia no escritório, no quarto que foi da minha filha e em que, até a chegada da pandemia, minha neta volta e meia dormia, e no nosso quarto.
***
Foi na hora em que mudei um pouco o estilo, e botei Sérgio Endrigo em dueto com Fafá de Belém cantando “Samba em prelúdio” que Mary se levantou do sofá e foi até o quarto – e viu que chovia. Inclusive na nossa cama. A rigor, no canto inferior esquerdo da nossa cama – o lugar que corresponde aos meus pés, quando estou bem esticado.
Se fosse Marina que estivesse contando essa história, ela com certeza diria: “Calma, gente!”
***
Esta foi a quarta chuva que enfrentamos dentro do apartamento em plena quarentena – e a primeira em dia em que houve chuva propriamente dita, queda de água vinda das nuvens.
Poucos dias antes do início da quarentena (nós começamos no dia 16 de março), começou a obra de reforma do apartamento que fica acima do nosso. Moramos no 13º, o penúltimo andar de um prédio construído no início dos anos 70. O 14º, a cobertura, tem boa parte do meu teto ocupado por uma varanda, uma área ao ar livre, descoberta.
Durante a obra de reforma, iniciada no começo de março, após os novos proprietários assumirem, choveu três vezes aqui no nosso apartamento por problemas de estouro de canos.
Na noite do sábado para domingo, enquanto ouvíamos boa, gostosa música, choveu.
A água da chuva empoçou na varanda de cima – e, como não foi feita uma impermeabilização, choveu sobre nossas cabeças.
Astérix, Obélix e seu pessoal morriam de medo de que o céu caísse sobre suas cabeças. Meu temor é mais terráqueo: é que caia água sobre nossas cabeças.
Uma chuvinha forte porém bem rápida, no início da madrugada deste domingo, 7/6, fez chover sobre nossas cabeças.
Da última vez que havia chovido no meu apartamento – a terceira chuva provocada pela obra que há 3 meses faz barulhos ensurdecedores nas nossas cabeças –, eu tinha ficado possesso. O novo vizinho, o novo dono do apartamento de cima tinha vindo ver os estragos, junto com o subsíndico, o Mário Sérgio – e eu fiz questão de nem olhar para ele. Foi recebido pela Mary, que mostrou as goteiras, os pontos em que caía água do apartamento dele em cima do nosso. Entraram aqui no escritório – eu fiquei aferrado à minha tela, e sequer olhei para o cara. Naquele momento, eu achava que, se olhasse para ele, falaria quase tantos palavrões quanto numa reunião ministerial do Bostanauro, perdão, Bolsonaro.
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Pois não é que, na madrugada passada, enquanto Mary e eu trazíamos baldes e mais todo tipo de contendor para conter a água que caía do apartamento de cima, em vez de ficarmos bravos, putos da vida, putos dentro da calça…. tivemos dó dos meninos que compraram o 141?
Tadinhos!
Eles não têm culpa.
Muito ao contrário. Estão sofrendo com tudo isso. Tanto quanto nós, Talvez até mais do que nós.
Neste domingo, vieram ver a situação. Olharam os baldes no chão, as marcas nos tetos.
Nos sentamos à mesa da sala para conversar – bem distantes uns dos outros, os quatro de máscaras, comme il faut.
São simpáticos, educados, delicados, gente boa.
São um casal jovem, bem jovem – e aí me lembrei de Suely e de mim quando éramos tão jovens demais, meu Deus do céu e também da terra, e ainda nem sabíamos que teríamos uma filha, que viria a ser essa Fernanda que é um exagero de coisa boa.
Ao longo do dia, cumprimentei Mary e a mim mesmo por termos nos portado bem, ao longo de toda a madrugada, todo o dia. Por, em vez de nos enfurecermos, termos agido logo, espalhado as panelas pelo chão da casa. Por, em vez de ficar xingando o mundo, termos tocado em frente.
Quando, finalmente, me dispus a fazer este relato aqui, estava menos irritado, puto da vida com a chuva na minha casa do que interessado em falar que estávamos ouvindo belas canções, como “Let it be me”. E que nem chegamos a ouvir “Let it be me” com Nina Simone.
7 e 8/6/2020