Toda a lésbica tem em si uma missionária. E peço já que não me crucifiquem, que a Páscoa já passou deixando a ressurreição pela hora da morte. A missionária que toda a lésbica acrisola não é tese minha, mas sim de Diana Souhami, tese vertida no seu livro No Modernism Without Lesbians.
E já eu, pressuroso a mostrar serviço, me encavalito nos ombros de Diana e juro pelas alminhas que, sem as lésbicas da parisiense margem esquerda, nem a garbosa França, nem a ex-imperial Europa teriam conhecido as delícias e os escândalos do modernismo, a terra devastada de T.S. Eliot, o esquinado cubismo de Picasso.
Mas se há ombros a que devamos subir é aos ombros de Sylvia Beach. Neta de missionários protestantes que deambularam pela India, arrebatando almas ao hinduísmo, longe de adivinharem que os trinetos acabariam em melopeias de hare-krishna-hare-hare, esta americana de corpo magro, com uma tensão e nervo de corda de violino, ali por volta dos 30 anos declarou-se parisiense. Apaixonou-se com descrição ensurdecedora por outra mulher, Adrienne Monnier, dona da livraria Les Amants du Livre. Adrienne tinha a mesma prazeirosa e redonda gordura de Gertrude Stein, patrona das artes. Adrienne e Sylvia rivalizaram com o casal que formavam Gertrude e Alice B.Toklas, esta magra e nervosa como Sylvia. Levaram no regaço escritores e pintores, os expatriados da Lost Generation, os trânsfugas de espírito macerado pela agulha do sublime.
E eis que dou com James Joyce a meter o ombro neste parágrafo, e a entrar-me na crónica. Sylvia era a dona da Shakespeare & Company, livraria mesmo em frente à da amada Adrienne, e chega Joyce a Paris. Traz num braço a mulher, Nora, no outro, um impublicável Ulysses. A livraria dava a Sylvia para os alfinetes, se Sylvia cuidasse de alfinetes. Conheceu Joyce num jantar que o poeta, e futuro fascista, Ezra Pound, lhe organizou. Os franceses enchiam os copos para um brinde tinto, mas Joyce tapou o dele: jamais bebia antes das oito da noite.
Fascinada, Sylvia descobriu nele o mais sensível dos irlandeses: à falta de vista, Joyce juntava um infantil medo aos cães, ao vasto oceano, às alturas que Hitchcock filmou em Vertigo, um insólito medo aos cavalos e às máquinas e um inenarrável medo às trovoadas.
E deixa, agora, de haver lugar para mim aos ombros de Sylvia: na linha de um popular “nem, nem”, descartando a primeira adversativa, Joyce nunca mais saiu de cima da missionária que havia em Sylvia.
Ela viu em Joyce a porta de entrada para a imortalidade. Leu Ulysses e cheirou na priápica e iconoclasta prosa de Joyce não o hediondo, mas o perfume do delírio estético. Juntou as envergonhadas poupanças e publicou, em inglês, em França, o livro de Joyce. Afinal já viviam em Paris, nesse ano de 1922, 30 mil americanos e outros 400 mil vinham por ano em turismo. E depois secretariou, vasculhou e cuidou do espólio dele. Joyce, que tanto lhe devia, nada lhe pagou. Dez anos depois entregou Ulysses a um editor americano e quase levou Sylvia à falência, o que, lapidar, ela resumiu assim: “Com Joyce, o prazer foi sempre meu – um prazer infinito –, os lucros, todos dele.”
Agora vejam, a Paris das artes, com André Gide de rédeas na boca, cavalgou em defesa de Sylvia. Enchiam-lhe a livraria, faziam sessões, com Hemingway sempre de copo cheio. Fizeram da Shakespeare & Company a mais lendária das livrarias. Fechou-a a pata nazi. Hemingway, fardado, viria libertá-la, em 1944, mas Sylvia, que escondera todos os livros num apartamento, já não quis abri-la.
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.