A radicalização política no país fez emergir uma direita pré iluminismo, para a qual a fé está acima da razão. Em vez da liberdade, igualdade e fraternidade, valoriza a defesa da pátria, família e religião.
É o que preconiza o manifesto do Aliança para o Brasil, partido que o presidente Jair Bolsonaro pretende criar: “Vamos construir juntos, com coragem, patriotismo e conservadorismo, um movimento que será uma trincheira na defesa dos valores judaico-cristãos e da soberania nacional”.
Ideologicamente, está mais para a França do marechal Petain do que para os valores da Revolução Francesa ou da Revolução Americana.
Disruptiva, se propõe a refundar o Brasil a partir da desconstrução do pacto social e político consagrado pela Constituição Cidadã de 1988. É marcadamente anticomunista e moralista, como alguns movimentos minoritários do século passado que mais chamavam a atenção por seu lado folclórico – os integralistas da década de 30, as Senhoras de Santana de 1964 ou a TFP (Tradição, Família e Propriedade).
Mas há diferenças fundamentais.
Os integralistas de Plínio Salgado tentaram chegar ao poder por meio de um golpe e fracassaram. Já a nova direita fez a “revolução reacionária” pelo voto. Está no poder, ditando rumos em áreas estratégicas, como nas relações exteriores, meio ambiente, cultura, educação e direitos difusos.
Pela primeira vez na história brasileira temos uma extrema direita com base de massas. Os ultras dos tempos modernos têm capilaridade na sociedade e definem o rumo de políticas públicas.
Entender o novo fenômeno exige não simplificar as coisas. Assim como a esquerda, a direita não é monolítica. Também aí nem todos gatos são pardos.
A título de ilustração: há uma diferença da água para o vinho entre o pensamento de José Guilherme Melquior e o de Olavo de Carvalho. Também na política não há termos de comparação entre o clã Bolsonaro e Rodrigo Maia ou ACM Neto, só para citar alguns nomes de uma direita democrática.
Seria mais apropriado definir a direita em dois campos. O dos conservadores com valores democráticos, mais próximos de uma direita civilizada européia ou de um centro-direita, e a direita reacionária. A primeira teve papel positivo em vários momentos da história do país, entre os quais na transição democrática de 1985.
A própria Constituinte de 1988 foi produto do entendimento entre parte dos conservadores e o centro-esquerda liderado por Ulysses Guimarães, José Serra, Mario Covas, Fernando Henrique Cardoso, entre outros.
Esse arcabouço está sob ataque especulativo de uma direita retrógrada e demolidora. A começar por uma conquista advinda da proclamação da República, o caráter laico do Estado. A separação entre religião e Estado deixa de existir a partir do esforço do presidente e seus auxiliares de inserir a religião na definição de políticas públicas.
A demolição de alicerces da civilização avança em diversas áreas da sociedade. A história passa a ser interpretada por meio de suas lentes ideológicas. A exemplo do PT, que negava tudo o que lhe antecedeu, “reinaugura” o Brasil a partir da sua assunção ao poder.
Na economia, apaga qualquer diferença entre políticas econômicas dos governos Sarney, Collor, Fernando Henrique, Lula e Dilma, como se todos eles tivessem sido social-democratas. Desconhece avanços acontecidos nos últimos 34 anos, como se Paulo Guedes fosse o inventor da pólvora.
Na área cultural não sobra pedra sobre pedra. Se propõe a destruir uma rica cultura construída ao longo de séculos e a levar para a fogueira da inquisição bolsonarista artistas como Fernanda Montenegro, Chico Buarque e Gilberto Gil. O pluralismo, a diversidade, o direito ao dissenso são negados para dar lugar a uma arte oficial e a uma nova classe de artistas alinhados à sua concepção ideológica.
O “realismo bolsonariano” é uma cópia medíocre do “realismo socialista” e tão nefasto quanto.
Valores como a liberdade de imprensa, de expressão, de cátedra, de religião são constantemente torpedeados. A impessoalidade da administração pública é constantemente desrespeitada, enquanto direitos da mulher, dos negros e dos índios são violados.
Quer retroagir aos tempos de Washington Luiz, quando a questão social era caso de polícia. Esse é o sentido do excludente de ilicitude para conflitos de terra.
Essa direita quer impor o pensamento único em um Brasil que é múltiplo. Não dará certo, assim como o totalitarismo, de direita ou de esquerda, não deu certo ao redor do mundo.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 1º/1/2020.