A infalibilidade do povo inglês

Faça-se justiça. Há uma infalibilidade que roça ombros com a infalibilidade do Papa, a infalibilidade do povo inglês. E já estou a ser de um intolerável sectarismo. A soletrada humanidade de Francisco tem feito da sua infalibilidade um sussurro. Pelo contrário, a energia ululante de Boris Johnson faz da infalibilidade inglesa o novo Big Bang.

A ideia de que vai haver Brexit é uma ideia peregrina. Qual Brexit, se os ingleses nunca estiveram na Europa! A Europa é um centro e o inglês, pé firme na infalibilidade, é por natureza excêntrico.

Vejam Jemmy Hirst, inglês que sentou o seu posterior nos séculos 18 e 19. Tendo ao lado uma raposa e uma lontra, recebia os convidados à volta do seu monumental caixão, cheio de janelinhas e portinholas. Praticava a fidalga caça à raposa, montado no seu touro, Júpiter. Tinha como pisteiros uma farejadora matilha de porcos, se os caçadores me autorizam esta enormidade. Hirst, estando-se nas tintas – e digo assim para não plagiar Sérgio Conceição – nas tintas, sublinho, para as recomendações da tradição ou de Bruxelas, julgava cavalos e cães imprestáveis para tão nobre actividade.

Mas se queremos fazer justiça a Boris Johnson, chamemos ao palco John “Fidalgo” Mytton. Aos dois anos, por morte do pai, herdou uma fortuna que levaria ao nirvana a silenciosa e zen propensão cativante de um Mário Centeno, esse maravilhoso excêntrico português. Só de rendas rurais recebia por ano o equivalente à ultrajante e aromática beleza de um milhão de euros. Foi logo expulso da escola de Westminster por aviar um professor à latada, e talvez uma parelha de coices da sua fidalguia rural, devaneio que repetiu na escola seguinte, Harrow. Tutores e professores privados cuidaram-lhe da educação – antecipando em século e meio o doce enlevo da nossa escola sem chumbos. Fez-lhes a vida negra mimando-os com aquelas graçolas ingleses, as practical jokes, como seja enfiar-lhes um cavalo inteiro na cama.

Em todo o caso, e já a atapetar a futura caminhada de Pedro Siza Vieira à frente da economia do nosso XXI governo constitucional, quando foi aceite na universidade, John Mytton levou duas mil garrafas de vinho de Porto para amenizar a inclemência dos estudos em Cambridge. Eis a velha e líquida aliança.

Estou para aqui com cochichos, e está mal, que a vida de Mytton é de berros.  Ninguém gosta de bater com a cabeça nas paredes ou cair da Torre Eiffel, pois não? Falso, gostava Mytton. Estão a ver a poupa loura de Boris Johnson, o seu corpanzil atirado para a frente? Mytton tinha o mesmo ardente desejo do choque e desastre: atirava-se às águas, rio ou mar, sem saber nadar, lançava cavalos e caleche, sobretudo se levava companhia, contra árvores, colinas ou valetas. Para ganhar uma aposta, entrou a cavalo num hotel, subiu a escadaria e do primeiro andar atirou-se, montado, sobre o balcão do bar e do balcão do bar, rebentando a grande janela do hotel, para a rua.

Nesse tempo em que os animais ainda falavam, reuniu a boa sociedade local – e talvez lá estivesse uma núbil Isabel, antes de ser segunda, um Churchill, mesmo uma senhora Tatcher. Mytton desvairou sala dentro a cavalgar um urso. Ligeiramente alterado pelos lancinantes clamores ingleses dos convivas, o urso mordeu, com uma ponta de ferocidade, a barriga da perna do intrépido cavaleiro.

Numa coisa Mytton coincide com Boris: no denodado apreço pelo Parlamento. Comprou votos e foi deputado pelos Tories. Esteve lá, sentado, calado, virado para a frente, meia-hora. Bocejou, saiu e, Brexit com ele, nunca mais voltou.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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