Será que, hoje, se podia escrever a história dos roubos e carnificinas dos mais mal-afamados piratas dos últimos vinte anos como a que escreveu o capitão Charles Johnson, no século XVIII? Atrevam-se a dizer-me um nome que, olhos nos olhos, faça frente ao de um Barba Negra!
O pirata contemporâneo, apesar da reivindicação off-shore, é sedentário. Camufla-se no gabinete, fingindo que a sua sumptuosa piscina é o equivalente do Caribe em que o Barba Negra deambulou no século XVIII.
O Barba Negra terá nascido de boas famílias: sabia ler e escrever e fez-se homem na Marinha britânica. Entenda-se, no século XVIII, um pirata era mais do que um pirata: os reis davam-lhes uma carta de corso que legitimava o assalto. Havia a peregrina ideia de que a actividade comercial consistia na transferência física, digamos assim, de bens materiais de umas mãos para outras. À bruta! Hoje, a desmaterialização gerou uma radical mudança da pirataria, o que o glorioso Barba Negra desdenharia, mantendo-se apenas a emissão de cartas de corso por governos, bancos e outras respeitáveis instituições. Digo eu, mas pode dar-se que esteja mal informado.
O lesado, roubado, assaltado é hoje transparente e anónimo, um zero à esquerda. Pelo contrário, espada na mão, pistolas à cintura, o assalto do Barba Negra era presencial e com direito a defesa. A vítima era reverenciada: vencido o combate, não há na história do Barba Negra um só caso de violência sobre prisioneiros.
E eu acho que aquela esquerda que não gosta que lhe chamem extrema, mas se desunha, na roupinha e no make-up, por ser radical, vai gostar de saber: o Barba Negra estabeleceu uma fraternidade sem lei, uma esplendorosa anarquia na ilha das Bahamas em que se fixou, num miminho de baía, águas rasas que impediam a entrada dos barcos de guerra perseguidores. O excesso de vinho da Madeira terá gerado aqui e ali uma violenta fractura da cana do nariz, um ameno tiro no joelho: não basta para desmentir a bondade da ausência de lei e ordem.
Vejamos, um barco de piratas era um paraíso de democracia directa, numa certa antecipação do peculiar modelo eleitoral do Livre. O capitão era votado pelos piratas e só era capitão no momento da abordagem. Mas na repartição, o Barba Negra recebia numa proporção de seis para um, inqualificável desigualdade que o Livre, se repartisse alguma coisa, não cometeria.
Volto aos lesados. O pirata actual é dissimulado. O Barba Negra não só dizia ao que vinha como o alardeava. A barba, pretíssima e cerrada, cobria-lhe a cara até aos olhos. Os cabelos, numa linha seguida no século XX pelos Led Zeppelin ou pelos Metallica, eram longos e encaracolados em rastas, depois usadas pelos jamaicanos, num caso óbvio de apropriação cultural. Com o seu chapéu de corsário, no momento do assalto, o Barba Negra punha nas rastas pavios em fogo, o que lhe conferia um ar de luciferino e ferocíssimo Orson Welles.
Matou-o o tenente Robert Maynard. Numa expedição tecnicamente ilegal – tal como hoje é prática universal se se querem caçar piratas – Maynard atacou-o de surpresa na base de descanso. Os canhões do Barba Negra fizeram uma sangreira no barco de Maynard, mas o tenente escondera homens nos porões. Quando o Barba Negra pisou confiante o convés inimigo, os homens irromperam e chacinaram os piratas. O Barba Negra aguentou cinco tiros e vinte cortes de espada e ia matar Maynard. Mas um soldado veio por trás e cortou-lhe a bela, assustadora e tão bem decorada cabeça. Maynard pendurou-a no gurupés do veleiro. O corpo atirou-o ao mar.
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.