É uma questão da natureza das coisas, não vai mudar nunca: governante autoritário não suporta imprensa livre. São coisas que não se misturam, como água e óleo. Sempre foi assim, sempre vai ser.
Quando o regime é autoritário não há imprensa livre. O governo autoritário assume, implanta a ditadura e acaba com a imprensa livre. É lei da natureza, como a gravidade – não há exceções. Simples assim.
É simples mesmo: nas ditaduras, há o partido único, a verdade única. Não existe essa coisa de opinião diferente, dissonante. Para que dois jornais? Basta um – como o Pravda na falecida União Soviética, o Granma em Cuba. (O fato de “pravda” significar “verdade” é só uma ironiazinha da ditadura soviética.) Emissoras de rádio e TV, só as oficiais.
Já quando há democracia, e o governante e seu partido são autoritários, dá nisso que estamos vendo, que temos visto desde 2003 (com uma breve interrupção entre meados de 2016 ao final de 2018, no período Michel Temer): o governante briga com a imprensa livre. Briga, xinga, berra, vocifera, espinoteia, pragueja, chama os jornalistas e os órgãos de imprensa de canalhas, disso e daquilo – e tenta, de várias formas, combater o que elegem como inimigos. Combater, derrotar, vencer. Na prática, calar, silenciar.
É assim com Donald Trump, o estrupício do Norte: não há dia em que ele não esbraveje contra o New York Times, a CNN, o Washington Post, às vezes até contra a Fox News, que apoia abertamente seu governo.
É assim com Jair Bolsonaro, que tem em Trump o ídolo, o modelo a seguir.
Agora até o prefeito do Rio de Janeiro, o bispo Marcelo Crivella, resolveu imitar o capitão e chegou ao absurdo de proibir a presença de jornalistas de O Globo numa entrevista coletiva sobre o réveillon.
Foi assim com Lula e o PT.
Eles tentaram – não colou.
Lula e o PT passaram seus 13 anos no poder tentando implantar o que chamavam de “controle social da mídia”, um nome bonitinho que na prática significa censura. Não conseguiram: quando há imprensa livre e instituições em funcionamento – o Parlamento, o Poder Judiciário, as associações de imprensa, a ordem dos advogados –, a opinião pública reage às ações do governante autoritário.
Em agosto de 2004, seu segundo ano no governo, Lula enviou ao Congresso Nacional um projeto criando o Conselho Federal de Jornalismo e suas respectivas seções estaduais. O texto, publicado no Diário Oficial da União de 5/8/2004, dizia que Conselho teria poderes para “orientar, disciplinar e fiscalizar” o exercício da profissão e a atividade de jornalismo – inclusive com poderes para punir jornalistas. Sua função seria a de “zelar pela fiel observância dos princípios de ética e disciplina da classe” e “colaborar com o aperfeiçoamento dos cursos de jornalismo e comunicação social com habilitação em jornalismo”.
A primeira composição do Conselho teria dez jornalistas profissionais efetivos e dez suplentes, todos indicados pela Fenaj, a Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais – órgão ligado à CUT, a Central Única dos Trabalhadores, por sua vez um braço do PT.
Dez jornalistas indicados pela Fenaj, ou seja, pelo PT, determinariam, em última análise, o que a imprensa poderia publicar.
Não colou.
A proposta foi derrubada na Câmara dos Deputados.
É um problema para governantes e partidos autoritários a tal da democracia.
Depois que o PT deixou o governo, em várias oportunidades dirigentes – inclusive o próprio Lula – expressaram arrependimento por não ter instituído o tal do “controle social da mídia”. E fizeram promessas de que, quando voltarem ao poder, vão fazer o troço, sim.
Ao sair da prisão, uma das primeiras providências de Lula foi voltar a fazer o que sempre fez: xingar a imprensa – especificamente a Rede Globo.
Ataques absurdos, inimagináveis
Apesar de estarem em polos opostos no espectro político, Jair Bolsonaro e Lula têm muito mais características em comum do que gostariam de admitir tanto bolsonaristas quanto lulopetistas.
Lula tem um partido político para chamar de seu; Bolsonaro está tentando criar o dele.
Os dois não escondem um profundo desapreço pelo aprendizado, pela educação, pelo aprimoramento pessoal, pela leitura. Cada um do seu jeito, os dois não dominam muito bem a Língua Pátria.
Não nutrem respeito por quem tem opiniões diferentes das deles.
Tiveram passagens inexpressivas pela Câmara – nunca foram parlamentares importantes.
Sobretudo, Lula e Bolsonaro têm em comum o ódio amplo, geral e irrestrito pela imprensa livre. E tentam silenciá-la.
Cada um tem até mesmo “um gringo pedra no sapato”, como disse o repórter Fábio Zanini em uma matéria na Folha de S. Paulo em agosto, com o título “Hostilidade à imprensa aproxima Bolsonaro e Lula”. O petista quis expulsar do país o correspondente do New York Times no Brasil, Larry Rohter, por ter escrito que o então presidente bebia demais. Bolsonaro se referiu a Glenn Greenwald, do site Intercept Brasil, dizendo que ele poderia “pegar uma cana”.
Os enfrentamentos de Bolsonaro com jornalistas e jornais, as baixarias, as imbecilidades que ele diz sobre a imprensa são quase diárias.
Já chegou até mesmo – elegante, finíssimo, um gentleman – a sugerir a um repórter que fizesse cocô dia sim, dia não, para preservar o meio-ambiente.
Mas baixarias, imbecilidades, isso é próprio do caráter (ou da falta de) do presidente da República. Seriam até divertidas, se não fosse uma tragédia termos um governante que tem baixarias, imbecilidades no seu DNA.
O problema, o grave problema, o que ameaça o país, as instituições, a própria democracia brasileira não é tanto o que Bolsonaro fala, e sim o que ele faz e anuncia que poderá fazer.
No meio da patética, chocante diatribe dele contra a Rede Globo, na live na madrugada em Riad, Arábia Saudita, ele ameaçou não renovar a concessão da TV. É inacreditável, inconcebível uma coisa dessas, ameaçar não renovar a concessão de uma emissora que faz críticas a ele e noticia fatos que ele quer negar– como a informação de que o porteiro de seu condomínio havia citado seu nome em depoimento envolvendo os suspeitos do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco.
Foi essa a notícia que provocou a fúria de Bolsonaro e a tal live patética, grotesca. “Isso é uma patifaria, TV Globo! TV Globo, isso é uma patifaria!, berrava o presidente, quase espumando, com uma expressão de doido perigoso. “É uma canalhice o que vocês fazem. Uma ca-na-lhi-ce, TV Globo. Uma canalhice fazer uma matéria dessas em um horário nobre, colocando sob suspeição que eu poderia ter participado da execução da Marielle Franco, do PSOL.”
A última frase é mentira pura. Em momento algum o Jornal Nacional o colocou sob suspeição – e teve o cuidado de informar que, ao contrário do depoimento do porteiro, Bolsonaro naquele dia estava em Brasília.
A questão séria mesmo é a frase que veio depois:
“Temos uma conversa em 2022. Eu tenho que estar morto até lá. Porque o processo de renovação da concessão não vai ser perseguição, nem pra vocês nem para TV ou rádio nenhuma, mas o processo tem que estar enxuto, tem que estar legal. Não vai ter jeitinho pra vocês nem pra ninguém.”
Na maior desfaçatez, na maior cara de pau, o presidente da República ameaçou não renovar a concessão da Globo.
Isso é absolutamente inimaginável. Louco. Doido varrido.
Ataques concretos
Além de todas as ameaças, das genéricas às específicas, como essa contra a Rede Globo, Bolsonaro já tomou ao menos três medidas concretas contra o jornalismo, contra a imprensa livre.
Nestes 11 meses de governo, ele editou duas Medidas Provisórias (MPs) que prejudicam financeiramente todos os jornais do país e tomou uma decisão administrativa para lesar diretamente um dos grandes órgãos da imprensa brasileira, a Folha de S. Paulo.
Isso é grave, gravíssimo.
Felizmente, no entanto, as instituições da República cumpriram e estão cumprindo seu papel, e se movimentando contra esses ataques concretos à liberdade de imprensa no país.
A MP 892/2019, publicada em 5/8, retirava a obrigatoriedade até então vigente de que as empresas de sociedade anônima publicassem anualmente seus balanços “no órgão oficial da União ou do Estado, conforme o lugar em que esteja situada a sede da companhia, e em outro jornal de grande circulação editado na localidade em que está situado a sede da companhia”.
Bolsonaro sequer tentou esconder que a decisão visava a cortar uma parte das receitas dos jornais. Não. Na maior cara de pau, declarou, no dia seguinte ao da edição da MP: “Ontem, retribuí parte daquilo (com) que grande parte da mídia me atacou”.
As MPs entram em vigor no momento em que são editadas, mas precisam ser aprovadas pelo Congresso no prazo de 120 dias. Na comissão mista formada na Câmara para analisar a MP 892, a senadora Rose de Freitas (Podemos-ES) – viva ela! – deu parecer para rejeitar o texto. “A MP 892/2019 abre espaço para maior possibilidade de fraude de documentos eletrônicos, seja por falhas técnicas nos sistemas de certificação digital, seja porque a MP autoriza a CVM a dispensar a autorização da certificação digital por meio de ato normativo da Comissão”, escreveu a senadora.
A MP foi deixada de lado no Congresso, não tramitou – e, nestes primeiros dias de dezembro, caducou, perdeu a validade. Foi para onde deveria mesmo ir: a lata de lixo.
Vitória do Congresso, das instituições, da imprensa livre, da Constituição, do Brasil.
A outra MP editada por Bolsonaro, a 896/2019, tem o mesmo sentido, o mesmo propósito desta que caducou: pretende tirar dos jornais uma fonte de renda. Ela faz alterações na Lei de Licitações, na Lei do Pregão, na Lei das Parcerias Público-Privadas e na Lei do Regime Diferenciado de Contratação, e acaba com a exigência de publicação em jornal de grande circulação de todos os atos licitatórios – licitações, concorrências do poder público, seja da União, dos Estados ou dos municípios. Pela MP 896, basta que o ente público que for lançar a concorrência publique os termos dela na internet.
Em outubro, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu a eficácia dessa MP até que ela seja analisada pelo Congresso. “Na decisão, mencionou os riscos da medida presidencial à transparência e à segurança jurídica, bem como a falta de urgência e a possibilidade de gerar danos irreparáveis”, escreveu O Estado de S. Paulo em editorial.
O editorial termina assim: “Que o Congresso dê à MP 896/2016 o mesmo destino da outra medida – a caducidade. Num Estado de Direito, não merece vigência nenhuma agressão à liberdade de expressão e de imprensa.”
Contra quem anuncia na Folha!
O ataque à Folha de S. Paulo é tão espantoso quanto as MPs para abalar todos os jornais. Edital de pregão eletrônico publicado no Diário Oficial no dia 28/11 excluiu a Folha dos órgãos de imprensa a serem assinados para uso na Presidência da República. A lista cita 24 jornais e 10 revistas; prevê 74 assinaturas de O Globo e 73 de O Estado de S. Paulo.
Na manhã seguinte ao dia da publicação do edital, Bolsonaro foi além na provocação: “Olha, a Folha de S. Paulo não serve nem para forrar aí o galinheiro. Olha só, eu estou deixando de gastar dinheiro público.”
Essas declarações seriam apenas patéticas, ridículas, se não viessem acompanhadas de uma ameaça real, concreta, irresponsável, criminosa mesmo: o presidente disse que boicota os produtos de quem anuncia na Folha – e recomendou que a população não compre o jornal.
“Recomendo a todo o Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S. Paulo. (…) Qualquer anúncio que faz na Folha de S. Paulo eu não compro aquele produto e ponto final.”
O ataque ao jornal provocou, naturalmente, como teria mesmo que acontecer, uma boa, bem-vinda gritaria. O ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto lembrou que o edital “escancaradamente desrespeita a lei de licitações, que resume e sintetiza muito bem os próprios princípios constitucionais da matéria”. Gilson Dipp, ex-ministro do STJ, disse que o ato fere princípios constitucionais como o da impessoalidade e da moralidade, desrespeita as leis de licitação e de improbidade administrativa, além de ir contra o decoro do cargo. O professor emérito da PUC-SP Celso Antônio Bandeira de Mello definiu: “Você não pode excluir uma pessoa porque você não gosta dela ou porqie te critica. Isso não tem nada a ver com as razões jurídicas de exclusão, então é claro que se trata de um ato nulo.”
Essas palavras são boas, são ótimas – mas ação é melhor ainda. O subprocurador do Ministério Público Federal Lucas Furtado pediu ao Tribunal de Contas da União que apure os motivos da tentativa de Bolsonaro de banir a Folha de S. Paulo no edital. A ABI, Associação Brasileira de Imprensa, ingressou com ação popular na Justiça Federal pedindo que a Folha não seja impedida de participar da licitação. O PCdoB também entrou com ação pedindo a suspensão da concorrência. E o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) requereu a convocação do ministro Jorge Oliveira, da secretaria-geral da Presidência, para que explique à Comissão de Transparência a medida.
Diante das reações, e das demonstrações de ilegalidade da decisão, Bolsonaro saiu-se com o seguinte: “A questão da Folha de S. Paulo não é de hoje. Para a Folha de S. Paulo a eleição não acabou. Agora, se a gente ferir qualquer norma ética ou legal, a gente volta atrás. Sem problema.”
E de fato voltou atrás: na sexta-feira, 6/12, o governo simplesmente revogou a licitação que excluía a Folha dos jornais assinados para a Presidência.
Fica absolutamente claro: Bolsonaro fará de tudo possível e imaginável para combater os jornais e emissoras de TV independentes, para prejudicá-los, para cortar suas fontes de renda. Tenta daqui, tenta dali. Não deu certo desse jeito? Podemos esperar que ele vai tentar de outro.
Já declarou que vai mandar nova MP para substituir a que caducou. Vai seguramente continuar a falar mal da Folha, da Rede Globo; vai tentar novas investidas.
O jogo está posto. Bolsonaro vai lutar contra a imprensa independente. Cabe às instituições impedir que ele vença a luta. Cabe a cada um de nós ficar atento, e protestar, protestar, protestar.
Democracia não é fácil, nem simples. Coisa boa tem seu preço. É outra lei da natureza.
Este texto foi escrito para a revista eletrônica Dom Total e originalmente publicado em 7/12/2019.
A charge é de Chico Caruso e foi publicada em O Globo em 8/12/2019.