Política já foi definida como a arte do diálogo, do convencimento ou, simplesmente, do possível. Ainda assim sempre foi propagadora de invencionices, calúnias contra adversários, promessas vazias e mentiras, práticas correntes agora turbinadas pelo advento das redes sociais. Por meio delas, como bem sabem as turmas do ex Lula e do presidente Jair Bolsonaro, criam-se verdades, alimentam-se tropas, destroem-se inimigos.
Ambiente propício mais para demolir do que para construir reputações, as redes foram a principal arma dos exércitos virtuais do PT para criar versões fabulosas e eliminar concorrentes. Mas eles parecem inocentes diante do que começa a surgir sobre as milícias bolsonaristas que agem nas entranhas da web. Revelações feitas não por opositores, mas por ex-fiéis da seita do capitão.
A lista de vítimas do bombardeio digital é extensa. Inclui ministros defenestrados por Bolsonaro, ex-companheiros de farda, jornalistas e gente tida como direita light pelo grupo apelidado de “gabinete do ódio” que estaria operando de dentro do Palácio do Planalto. Mais precisamente, a partir do terceiro andar, o mesmo do presidente, sob a batuta do chefe da Assessoria Internacional, Filipe Martins. Tudo sob coordenação e aval da prole, especialmente de Carlos Bolsonaro, administrador confesso da conta do pai no Twitter.
A imolação mais recentemente foi a da ex-líder do governo, deputada Joice Hasselmann, exposta em memes grotescos em que aparece de biquíni no Salão Verde da Câmara ou ilustrando uma nota de R$ 3,00, montagem que o filho 03 expôs na rede e que o pai tem adorado compartilhar via WhatsApp. Outro neo-desafeto da turma, o deputado Alexandre Frota, foi execrado com fotos e dizeres indizíveis.
Joice, que diz conhecer o que a primeira família fez no verão passado, saiu atirando. Afirmou que sabe da existência de 1.500 perfis falsos e que está reunindo provas para demonstrar como as ações se dão. Frota também diz ter bala na agulha e ameaça apresentar um dossiê à CPMI das Fake News, em audiência prevista para a próxima quarta-feira. Mesmo sendo maioria na composição da CPMI, a oposição aprovou a convocação da deputada petista Gleisi Hoffmann, preço pelo cultivo de inimigos dentro do seu próprio partido.
Difícil antecipar se a Comissão vai conseguir ou não chegar a alguns dos responsáveis pela confecção e divulgação de notícias falsas, sejam elas pró ou anti-Bolsonaro. Mas antes mesmo de começar a ouvir convidados e intimados ela já está pegando fogo. A ponto de o governo cogitar que seus auxiliares fiquem mudos quando forem depor. Seis deles, incluindo Martins, foram convocados, ou seja, são obrigados a comparecer. A data ainda não foi fixada.
Com uma agenda que atravessará o ano, a CPMI deve ouvir a ministra Rosa Weber, presidente do TSE, Corte que abriga a discussão sobre a influência das mentiras cibernéticas e dos disparos de mensagens em massa no resultado das eleições do ano passado, e a ex-procuradora-geral Raquel Dodge, responsável pela abertura dos processos sobre o tema. Convocou ainda o empresário Luciano Hang, dono da Havan e bolsonarista roxo, sobre quem pairam suspeitas de ser financiador desse tipo de procedimento. Donos de blogs governistas, bem definidos pelo diretor da Jovem Pan, Felipe Moura Brasil, como blogueiros de crachá, também serão ouvidos, assim como dirigentes de serviços de checagem da veracidade de notícias.
Sites como boatos.org, e-farsas.com, projetocomprova.com.br, estadaoverifica.com.br, e Fato ou Fake (G1) são outra dor de cabeça permanente para o governo. Um deles – o aosfatos.org – montou um acompanhamento diário que até a quinta-feira, 24, registrava 422 declarações falsas ou distorcidas feitas pelo presidente em 296 dias.
Idólatra de Donald Trump – um dos maiores difusores de fake news, cuja assessora imortalizou a hilária categoria de “fatos alternativos” -, Bolsonaro tem feito direitinho a lição de casa. Falsidades postadas por supostos apoiadores, como a frase “Bolsonaro entrou o Brasil andou” associada à foto do trem privado “double-stack”, que desde o ano passado liga as cidades de Sumaré (SP) a Rondonópolis (MT), ou mentiras deslavadas, essas ditas pelo presidente, sobre os incêndios na Amazônia, que teriam sido os menores dos últimos 15 anos, correm soltas pelas redes como se verdades fossem.
O mesmo ocorre com a suspeita leviana de que o governo da Venezuela esteja envolvido no derrame de petróleo no litoral brasileiro, conspiração alimentada pelo presidente e divulgada insistentemente pelo ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles. Esse, aliás, protagonista de uma das cenas mais nonsense já vista no horário nobre: a divulgação de fake news em rede obrigatória de televisão.
Uma CPMI, mesmo das boas, é incapaz de barrar tamanho desatino.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 27/10/2019.